Os últimos dias de janeiro são marcados por angústia e sofrimento ainda mais acentuados para quem viveu a tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, na região central do RS. Familiares de vítimas e sobreviventes de um dos maiores incêndios do país, que encerrou a vida de 242 pessoas e deixou outras 636 feridas, em 2013, convivem com a saudade, a dor e a busca por Justiça há uma década. Numa forma de transbordar e buscar apoio para enfrentar esses sentimentos e indagações, por vezes vividos em silêncio, é realizado, nesta quarta-feira (25), o primeiro ato da série de programações agendada para ocorrer até o fim desta semana.
A Praça Saldanha Marinho, na área central, é o ponto de partida para a ação, que se iniciou no começo da noite. A partir da praça, seguindo pela Rua Rio Branco, no trajeto de uma quadra que leva até a Boate Kiss, estão sendo coladas no chão 500 frases, questionamentos e fotografias produzidas ao longo dos 10 anos do caso. O intuito é de formar uma espécie de memorial pelas ruas da cidade, levando quem passa por ali a refletir sobre a tragédia e as marcas que ela deixou.
— Essas frases vêm das falas que os parentes, familiares, sobreviventes, todos nós escutamos. "Deixa descansar", "Sigam em frente". Então, de alguma forma, estamos devolvendo isso para a população, de uma maneira mais gentil, com arte, com delicadeza. Convidando para que possamos olhar para essas frases tão fortes e encarar essa ferida, que faz parte da nossa história — explica Ariádini de Andrade, psicóloga e psicanalista, componente do Eixo Kiss, do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, que integra a organização da programação dos 10 anos.
Ela explica que um dos objetivos é fazer com que essa dor não fique restrita a alguns grupos, e que seja encarada por toda a sociedade para que esse evento traumático possa ser enfrentado de forma coletiva.
— Poderia ter sido o teu primo, a minha amiga, o meu amigo. A nossa vida mudou depois de tudo que aconteceu — diz.
As imagens coladas retratam momentos de afeto, como abraços trocados ao longo desse período. Outra envolvida no Eixo Kiss, a psicóloga Vanessa Solis Pereira afirma que é desse acolhimento que as pessoas necessitam, inclusive os sobreviventes:
— No início, teve muita solidariedade, comoção. A medida que o tempo passa, isso vai se perdendo. Uma das questões que nos mobiliza bastante é pensar esse cuidado com quem ficou.
As fotografias empregadas na colagem são registros realizados pelo fotógrafo Dartanhan Baldez Figueiredo, de Santa Maria.
— Além da batalha por Justiça, temos uma batalha por memória — diz o fotógrafo, que acompanhou o caso desde o início.
Era para essa mesma praça que, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, muitos familiares recorriam sem saber para onde seguir. Desorientados, sem notícias sobre o paradeiro dos filhos e sem poder acessar a boate, buscavam incessantemente contato com os jovens e tentavam decidir que rumo tomar. Dali, muitos partiram, na sequência, num martírio rumo aos hospitais, na tentativa de encontrar os filhos desaparecidos, e boa parte deles se viu pela manhã em frente ao ginásio Farrezão, para onde eram levados os mortos.
Famílias reunidas
No início da noite, vestindo camisetas brancas, familiares começaram a se reunir na praça. Trocavam abraços e palavras de afeto, próximo da tenda onde estão expostas as fotos das vítimas do incêndio.
Ali, foram distribuídos os retratos e frases. Outros aguardavam com potes de cola. No caminho, pessoas de todas as idades, inclusive crianças, faziam a colagem. Outros trocavam abraços durante a intervenção. No chão, é possível ler perguntas como: "Silenciar é descansar?, "O que Santa Maria diz sobre a kiss?", "Vocé sabe quem são e onde estão os sobreviventes da Kiss?" ou "Por que falar na Kiss?".
Entre elas, Jaqueline Machado, mãe de Leonardo de Lima Machado, que tinha 26 anos no dia da tragédia. A mãe, que chegou ao local usando uma camiseta com a foto do filho, diz que não quer vingança, apenas que todos os culpados sejam responsabilizados. Ela afirma que também busca que a Kiss seja um exemplo para que não ocorram novas tragédias.
— Uma maneira de homenagear e chamar a atenção principalmente aqui na cidade — declara.
Jaqueline afirma que recorda do filho com orgulho. Em meio à tragédia, Leonardo chegou a usar um extintor de incêndio tentando apagar as primeiras chamas dentro da boate — as imagens desse momento foram obtidas pela polícia e divulgadas na época.
— Isso tem que ser sempre lembrado. Muitas pessoas podem ver seus filhos, eu só posso ir ao cemitério — pontua.
Um dos apelos de familiares nesses 10 anos é por justiça para o caso. Em dezembro de 2021, os quatro réus que respondem pelas mortes das vítimas foram condenados, após o mais longo júri da história gaúcha. No entanto, em agosto do ano passado, o Tribunal de Justiça atendeu aos pedidos das defesas e decidiu anular o júri, determinando que novo julgamento seja realizado. Depois disso, o Ministério Público e a associação que representa as famílias ingressou recurso especial junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outro extraordinário junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) — ambos ainda não julgados. Ainda não se sabe quais rumos o processo tomará daqui para a frente.
Inspiração
A intervenção tem como inspiração um artista, que espalhou milhares de "pedras de tropeço" pela Europa. Numa forma de lembrar as vítimas do nazismo, a partir de 1996, Gunter Demnig passou a espalhar placas de latão pelas ruas da Alemanha e, mais tarde, de outros países europeus. Nelas, estão gravados nomes de vítimas do regime nazista, tanto de pessoas que morreram em campos de concentração como de sobreviventes. O projeto de Demnig se tornou conhecido mundialmente e é apontado como uma espécie de memorial descentralizado.
Em Santa Maria, o caminho escolhido para realizar a intervenção com colagens é o mesmo que será percorrido pela comunidade na noite de quinta-feira (26). Logo após a exibição do primeiro episódio da série documental da Globoplay, com parceria da TV Ovo, que será realizada no auditório do Colégio Marista, os familiares devem dar início à vigília. Em caminhada, partirão da Praça Saldanha Marinho até a frente da Boate Kiss.
Uma das ações que será realizada às 23h de quinta é a apresentação de uma coreografia, e logo depois serão feitas colagens na fachada da Kiss. Serão fixadas fotografias de mãos dadas também realizadas pelo mesmo fotógrafo. A intervenção ocorrerá ao som do poema Mãos Dadas, do escritor Carlos Drummond de Andrade. A série de homenagens seguirá até alcançar a madrugada do dia 27.
Apoio
A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) fez apelos à comunidade, como vestir roupas brancas e sinalizar os veículos com fitas da mesma cor. Também pediu que estabelecimentos usem laços e outros objetos brancos. Essa é uma forma de demonstrar apoio à causa.
Em respeito à data, diversos bares e casas noturnas de Santa Maria divulgaram, nesta semana, que não irão abrir as portas na sexta-feira (27) ou não terão apresentações de música ao vivo. A decisão se deu após um apelo da Associação dos Familiares para que o dia fosse uma data marcada pela reflexão e que não fossem realizadas aglomerações.
Durante o período das homenagens, a Rua dos Andradas, onde está localizada a antiga Boate Kiss, também terá bloqueios. O trânsito ficará interrompido no trecho entre a Rua André Marques e a Avenida Rio Branco, das 9h de quinta até as 14h de sexta-feira.
Sobrevivente da tragédia, o presidente da AVTSM Gabriel Rovadoschi Barros, 28 anos, disse em frente à boate que, no futuro, deve ser transformado num espaço de memorial, que as colagens são registros do passado, que representam o afeto trocado entre as pessoas nessa década.
— Amanhã, vamos percorrer o mesmo caminho para pensar justamente no nosso futuro — pontuou, sobre a vigília a ser realizada entre a noite de quinta-feira e a madrugada de sexta.
Outras programações
Além da colagem realizada nesta quarta-feira, o Eixo Kiss também promoverá outras ações durante a programação. Na quinta, uma psicóloga oferecerá suporte às pessoas que não quiserem assistir à exibição do documentário. Luiza Roos vai convidar ainda as pessoas a criarem suas próprias colagens.
No mesmo dia, às 22h, será realizada exibição de fotografias do mesmo fotógrafo, Dartanhan Baldez Figueiredo. A proposta dessa intervenção é receber e acolher as pessoas que estiverem saindo da exibição do documentário com música e fotografias de abraços feitas pelo fotógrafo. Essas fotografias foram registrada em ações promovidas pela AVTSM e outras instituições ao longo desses 10 anos.