Há quase meio ano, por dois votos a um, desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) decidiram por anular o júri da Boate Kiss, realizado em Porto Alegre, em dezembro de 2021, que durou 10 dias, tornando-se o maior da história da Justiça gaúcha, e condenou os quatro réus. Eles acataram nulidades alegadas pelas defesas e, com isso, os acusados foram soltos, depois de quase oito meses detidos. Contra a anulação do julgamento, o Ministério Público e a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) entraram com recurso especial junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e outro extraordinário junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ambos ainda não foram julgados.
Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, então sócio da Kiss, havia sido condenado a 22 anos e seis meses de prisão em regime fechado. Mauro Hoffmann, também sócio da Kiss à época, tinha sido condenado a pena de 19 anos e seis meses de prisão. Vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos foi sentenciado a 18 anos, mesma pena de Luciano Bonilha Leão, produtor de palco da banda.
O pós-doutor em Direito Penal e professor da PUCRS Marcelo Peruchin lembra que três nulidades foram declaradas por dois desembargadores, formando maioria. Mesmo que outras tivessem sido acolhidas, não houve a concordância do maior número de representantes. Portanto, essas três acarretaram a anulação do julgamento: o fato de ter havido três sorteios de jurados, ao invés de apenas um; uma reunião reservada do juiz Orlando Faccini Neto, que presidiu o julgamento, com conselho de sentença; e uso de acusações contra réus que haviam sido excluídas pelo TJ.
— Os tribunais poderão dar provimento aos recursos, como reverter a decisão da nulidade, ou manter o veredito do TJ, sendo anulado em definitivo o júri e um novo julgamento agendado com novo conselho de sentença — explica Peruchin. — Agora (caso seja mantida a anulação) é novo júri, sete novos jurados, júri com atos renovados, oitivas, debates, repostas aos quesitos dos sete jurados. Tudo será feito do zero até a sentença — acrescenta o especialista.
O TJ informa que o pedido está no Departamento de Recursos aos Tribunais Superiores, que intimou as partes a apresentarem suas respostas. Posteriormente, seguirá para a 2ª Vice-Presidência, para análise de admissibilidade. Nessa etapa, o 2º vice-presidente do tribunal irá analisar a possibilidade dessas apelações seguirem para as cortes superiores, ou seja, STF ou STJ. Não foi divulgada previsão de prazos.
O subprocurador-geral de Justiça para assuntos institucionais do MP, promotor Júlio César de Melo, diz que a posição do órgão está "exaustivamente" demonstrada nos recursos encaminhados a tribunais superiores. Segundo ele, não houve nulidades e, mesmo assim, as mesmas não foram apresentadas no momento oportuno. Portanto, segundo ele, o júri na Capital deve ser mantido. Melo ressalta que o MP ficou perplexo com as nulidades apresentadas no ano passado e aguarda o resultado dos vários recursos interpostos:
— Lamentamos a decisão que reconheceu as nulidades, que não ocorreram em detrimento às defesas. Nós nos solidarizamos com vítimas e familiares que sofrem com esse luto, expressando que vamos empreender todos os eforços para reverter essa decisão inicial e para que os recursos tramitem o mais rápido possível.
Lamentamos a decisão que reconheceu as nulidades, que não ocorreram em detrimento às defesas. Nós nos solidarizamos com vítimas e familiares que sofrem com esse luto, expressando que vamos empreender todos os eforços para reverter essa decisão inicial e para que os recursos tramitem o mais rápido possível.
JÚLIO CÉSAR DE MELO
Promotor
Sobre uma das nulidades acolhidas — o sorteio dos jurados —, o juiz Faccini Neto diz que o número de jurados sorteados nos júris que presidiu na Capital foi sempre maior que 25. Quanto às demais nulidades apontadas, diz que é preciso aguardar o julgamento das instâncias superiores para definir se houve erro nos procedimentos.
Advogado que representa a AVTSM e que também foi assistente de acusação no julgamento anulado, Pedro Barcellos Júnior diz que a entidade esperava que o júri fosse mantido, no máximo com alguma modificação sobre pena ou prisões dos réus.
— Eu entendo o sistema, mas os pais não, o que é compreensível. Todos acreditam que nunca vai ter fim, que estão sempre contra nós, que não querem que os responsáveis sejam culpados. Passam mil coisas no imaginário, apesar de ter ocorrido uma questão técnica (anulação). A cabeça dos pais fica confusa.
As defesas dos réus
O advogado Jean Severo, que representa o produtor musical Luciano Bonilha Leão, acredita que o recurso será mantido nas instâncias superiores, reconhecendo as nulidades e anulando o júri. Como ainda está sob análise no TJ gaúcho para ir ou não a Brasília, Severo adianta que irá ingressar com um agravo — recurso contra uma decisão tomada - para garantir o que já foi decidido em agosto de 2022. Ele ressalta que Leão está ansioso, aguardando pela nova decisão.
A advogada Tatiana Borsa, que representa o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, entende que a anulação foi importante por ter refletido o que realmente é "fazer justiça", respeitando os ditames legais. Ela espera que os réus possam enfrentar novo julgamento e diz que seu cliente segue trabalhando, reconstruindo sua vida na expectativa de ser absolvido.
Que o Ministério Público aceite o resultado da 1ª Câmara do TJ, que é um resultado tecnicamente justo e correto, já que houve a nulidade, e para que, assim, o processo volte para a 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, para que o novo julgamento ocorra ainda em 2023.
JADER MARQUES
Advogado de Elissandro Spohr, o Kiko
A defesa de um dos ex-sócios da casa noturna, Elissandro Spohr, o Kiko, advogado Jader Marques, ressalta que o juiz Faccini foi alertado sobre a nulidade que diz respeito ao sorteio dos jurados e que, mesmo assim, "quis correr o risco". Marques também afirma que o processo em si depende agora da promotoria, pelo fato de estar oferecendo vários recursos, um atrás do outro, podendo prolongar o andamento processual e tendo um novo júri só após 2024.
— Que o Ministério Público aceite o resultado da 1ª Câmara do TJ, que é um resultado tecnicamente justo e correto, já que houve a nulidade, e para que, assim, o processo volte para a 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, para que o novo julgamento ocorra ainda em 2023 — diz o advogado.
Por fim, Bruno Seligman de Menezes, um dos advogados que defende outro ex-sócio da Kiss, Mauro Hoffmann, também acredita que, devido à quantidade de violações às leis processuais praticadas por diversos agentes durante o júri, a anulação será mantida. Para ele, o tempo e a demora ficam em segundo plano, e ressalta que seu cliente segue angustiado ao longo de 10 anos por querer um fim para este processo.