Aprovada em dezembro de 2013 como uma resposta legislativa à tragédia daquele ano, a chamada Lei Kiss ainda não é plenamente aplicada no Rio Grande do Sul. Por conta de adiamentos, parte das exigências da lei gaúcha só serão cobradas no fim de 2023 – dez anos depois de a lei entrar em vigor.
A última extensão de data para adequação foi feita em 2019, por meio de decreto do governador Eduardo Leite. O adiamento permitiu que proprietários de edificações ganhassem mais tempo para se adequar às medidas mais complexas de segurança.
— Dez anos depois da tragédia a gente ainda tem edificações que podem não ter as medidas de segurança mais complexas — explica a coordenadora do Curso de Especialização em Engenharia de Segurança contra Incêndio da UFRGS, Ângela Graeff.
O prazo foi estendido para que “as edificações existentes pudessem ser dotadas de todos os sistemas e equipamentos de segurança”, segundo resposta do Corpo de Bombeiros a GZH. Apenas empreendimentos construídos antes da Lei Kiss são contemplados pelo adiamento, acrescenta a corporação.
Arquitetos e engenheiros criticam flexibilizações da Lei Kiss
Desde 2013, a lei gaúcha de proteção e prevenção contra incêndio também vem passando por uma série de flexibilizações. Em 2016, em uma série de alterações na lei, criou-se uma modalidade de autolicenciamento para determinados tipos de empreendimentos. A mudança também retirou a exigência de assinatura de engenheiro ou arquiteto no encaminhamento dessa documentação aos Bombeiros.
Em dezembro de 2022, outra mudança: o governo do Estado encaminhou o fim desse modelo de autodeclaração para um conjunto de empreendimentos de baixo e médio risco. Com isso, os empresários podem abrir esses tipos de negócios sem a necessidade de qualquer liberação ou alvará dos bombeiros.
Nesses empreendimentos de baixo e médio risco, as medidas de segurança (como extintores, iluminação de emergência e saída de emergência) seguem obrigatórias. A diferença é que, sem licenciamento, o governo pressupõe a boa fé dos empreendedores de que eles respeitarão todas as exigências de equipamentos.
— Isso traz uma fragilidade e uma responsabilidade maior para a pessoa que é proprietária ou usuária da edificação. Ela realmente entende que vai precisar colocar todos os equipamentos de segurança? É uma responsabilidade muito grande — diz a presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio Grande do Sul (CREA-RS), Nanci Walter. Logo após a aprovação, em dezembro, outras entidades também se manifestaram contrárias às alterações.
Na avaliação da coordenadora do curso de Especialização em Segurança contra Incêndio da UFRGS, a liberação de licenciamentos e alvarás de incêndio poderia funcionar caso a sociedade brasileira tivesse uma cultura forte de prevenção a incêndios.
— A gente está correndo o risco de que algumas edificações estão inseguras. Se a gente tivesse uma cultura de prevenção e proteção contra incêndios bem enraizada, a lei atual estaria o.k. Mas a gente não tem. A gente entende enquanto sociedade que a proteção contra incêndio é um gasto — acrescenta Graeff.
O presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RS), Tiago Holzmann da Silva, entende que as flexibilizações são motivadas por questões econômicas e financeiras, e não de segurança à população.
— Apesar de ser um argumento que raramente vem a público, isso claramente é motivado por questões econômicas e financeiras. A prevenção e o combate a incêndios exige decisões de projeto, de obras e de equipamentos que exigem recursos dos investidores e de órgãos de governo — aponta Silva.
Arquiteto que atua no setor privado com projetos de Proteção e Prevenção contra Incêndios (PPCI), Evandro Medeiros entende que a lei pode ser alterada, desde que isso tenha como objetivo melhorar a segurança da população.
— A economia não é uma medida de prevenção contra incêndio. Quanto às flexibilizações, me parece que o maior problema é de quem parte e por que motivos — diz Medeiros.
GZH questionou ao Corpo de Bombeiros se avalia que as alterações na Lei Kiss ampliam ou reduzem a segurança da população. Em resposta por email, a corporação afirmou que as mudanças foram definidas pela Assembleia Legislativa e que “é importante referir que as alterações realizadas, a fim de desburocratizar os processos de licenciamento, estão relacionados à entrega de documentação e outros trâmites administrativos, não se relacionando com os equipamentos e sistemas de proteção contra incêndio”.
MP aposta em fiscalização para ampliar a segurança
O Ministério Público garante que monitora as alterações da lei de prevenção contra incêndio no Estado, e que buscará o governo do Estado para negociar ajustes pontuais da última flexibilização encaminhada.
— A mim me parece que é muito comum quando se editam normas após acidentes ou fatos muito importantes que se tenham providências muito restritivas, e que com o passar do tempo é possível fazer ajustes em determinadas áreas. Em suma, me parece que o simples fato de abolir uma autodeclaração (feita pelo empreendedor) não fragiliza a proteção — diz o promotor Felipe Teixeira Neto, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Ordem Urbanística e Questões Fundiárias.
No geral, o MP não discorda das flexibilizações, desde que haja uma ampliação expressiva dos mecanismos de fiscalização por parte dos Bombeiros.
— A gente tem muita resistência quando se fala na questão da boa fé. Os exemplos práticos nos levam a crer que não é suficiente. Este caso da Kiss talvez seja a grande demonstração de que muitas atividades empresariais tendem a buscar fazer (o negócio) com o menor custo para maximizar os ganhos. As medidas de fiscalização são o único remédio para isso. Acreditar na boa fé, mas estar vigilantes — defende Teixeira Neto.
Uma das entidades que atuou em favor das mudanças da Lei Kiss foi a Famurs (federação que representa os municípios gaúchos). O presidente da Famurs, Paulinho Salerno, é favorável às mudanças, apontando que houve redução de burocracia, sem aumento dos riscos.
— Isso mexe na economia dos municípios. Quando temos uma condição de que novos empreendedores acessem o mercado, iniciem uma nova empresa, com gasto menor e rapidez na abertura do negócio, isso melhora a qualidade de vida e a própria economia dos municípios — diz Salerno.
Tanto o MP quanto o representante dos municípios alertam para o problema envolvendo prédios públicos destinados a atividades essenciais. Há escolas e hospitais, por exemplo, que ainda não estão adequados ao que exige a proteção contra incêndio no Rio Grande do Sul.
— Algumas vezes temos estruturas que são muito anteriores a 2013 e acabamos tendo dificuldades — diz Salerno.
O MP diz que, nestes casos, vive um dilema que frequentemente acaba em flexibilizações.
— O grande problema é que tem uma série de atividades com as quais precisamos conviver independentemente de se regularizarem. Um grande debate até hoje é sobre licenciamento dos bombeiros para escolas e outros serviços públicos. Às vezes precisamos adotar estas flexibilizações consensuais porque não podemos simplesmente encerrar as atividades — conclui o promotor.