O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, completa 10 anos nesta sexta-feira (27). Para homenagear os 242 mortos, o coletivo "Kiss — Que Não se Repita" iniciou o projeto Tempo Perdido, que reproduziu simulações de como estariam as fisionomias de oito pessoas que perderam a vida na tragédia.
A chamada progressão de tempo é feita com recursos de inteligência artificial, e os resultados são mostrados em fotos.
Conforme os responsáveis pelo projeto, o objetivo é trazer conforto e amor para as oito famílias escolhidas, que aprovaram a ação. Sete das vítimas retratadas eram de Santa Maria, e uma de São Gabriel.
Os homenageados pelo projeto também terão a história apresentada na série sobre a tragédia que está sendo produzida pela Netflix, Todo Dia a Mesma Noite.
A primeira homenageada foi Letícia Vasconcellos, funcionária da boate Kiss. Ela trabalhava no local há cerca de dois anos como recepcionista. Quem conseguiu o emprego foi a sua irmã mais nova, Vanessa, que atuava como responsável pela comunicação da casa noturna e afirma que a homenagem, embora impactante, ajuda a manter viva a memória de Letícia.
— Para nós, ela sempre vai ser como era até o dia da tragédia. Mas ver essa homenagem traz até um conforto, possibilitando que a gente consiga imaginar como ela estaria. Toda homenagem é sempre muito impactante e, embora seja um pouco sofrido, também é reconfortante, porque ela sempre vai estar viva dentro da gente e essa homenagem mostra que a memória dela também está — destaca Vanessa.
Ela tinha 36 anos quando morreu asfixiada pela fumaça tóxica liberada pelas espumas para isolamento acústico da casa noturna.
O segundo retratado foi Lucas Dias Oliveira, que estava na Kiss com a namorada, Yasmim Müller, 19 anos, para comemorar o aniversário dela junto de amigos.
Apaixonado pelas tradições gaúchas, Lucas conheceu Yasmim na loja de indumentárias tradicionalistas Casa do Gaúcho, em Santa Maria. Logo os dois começaram a namorar.
No dia 26 de janeiro, o jovem chegou tarde à casa da mãe depois de ter passado o dia inteiro treinando para um rodeio do qual participaria no final de semana seguinte. Lucas queria ir pilchado à boate, mas desistiu da ideia após os amigos sugerirem que ninguém ia à Kiss vestido daquela maneira. Deixou sobre a cama um chapéu preto, que no dia seguinte seria um símbolo da dor dos gaúchos.
Por volta da meia-noite, ele e a namorada foram à Kiss. Pouco antes do incêndio, Lucas se declarou a Yasmim, pedindo que ela nunca o deixasse e, em seguida, foi ao banheiro. Logo depois, o fogo começou. A namorada tentou buscar por ele em meio ao caos, mas foi levada para fora por um amigo. Lucas, na época com 20 anos, não conseguiu sair.
A terceira retratada foi a jovem Thanise Corrêa, que tinha 18 anos no dia da tragédia. Ela era a primeira filha de Carina Corrêa, que ficou grávida quando tinha 15 anos. Quando a primogênita cresceu, viraram melhores amigas. Elas saíam para se divertir juntas com frequência.
A ida de Thanise à Kiss já era certa. Naquela semana, as duas foram em busca de uma roupa e um sapato para que ela fosse à festa. Carina estava de plantão em um hospital da cidade. As duas se falaram pela última vez por volta da 1h de domingo, pouco antes de o incêndio começar. A filha disse que estava cansada e que logo iria embora.
Thanise era orgulho de toda a família, especialmente dos avós, que celebravam a entrada dela na faculdade de Filosofia um ano antes. Era também um espelho para a irmã mais nova, Camilly, que tinha 13 anos à época do incêndio.
O quarto retrato divulgado no projeto foi o de Heitor Santos Oliveira Teixeira. Aos 24 anos na época do incêndio, ele estava na reta final do curso de Economia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), cursando o penúltimo semestre. Junto de um amigo, estava empreendendo, com um bar em Porto Alegre. O negócio ia bem, e Teixeira pretendia se mudar para a Capital.
Ele foi até a Kiss por volta da 1h30min daquele dia 27 para entregar documentos a promoters da casa noturna em razão de um trabalho que estava fazendo. Heitor já havia saído de dentro da boate quando o incêndio começou. Retornou ao interior da Kiss para ajudar amigos e não conseguiu mais sair.
A quinta jovem retratada na séria foi Melissa Amaral Dalforno. Também estudante da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Melissa, que tinha 19 anos no dia da tragédia, cursava o segundo semestre da graduação de Tecnologia dos Alimentos. Natural de São Gabriel, na Fronteira Oeste, a jovem não costumava sair para baladas em Santa Maria.
Na semana anterior ao incêndio, Melissa estava na sua cidade natal, e prometeu que voltaria na semana seguinte, para comemorar o aniversário da sua mãe, Mara. Contudo, a jovem também não conseguiu sair da boate durante o incêndio.
O sexto retrato produzido no projeto foi o de Augusto Cezar Neves. Acadêmico do curso de Ciências da Computação, Augusto, que também tinha 19 anos no dia do incêndio, era o orgulho dos pais Maria Aparecida, a Cida, e Cezar.
Augusto era gremista e músico. No violão e na guitarra, gostava de tocar rock e também música gospel. Os instrumentos foram retirados de dentro do armário dele no dia da tragédia e deixados à vista, no quarto, que segue do mesmo jeito que ele deixou naquele dia 26 antes de ir para a festa na boate.
A penúltima vítima retratada no projeto foi Andrielle Righi da Silva, que tinha 22 anos quando morreu e é filha de Flávio da Silva — que foi presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
Andri, como era chamada, foi à Kiss para comemorar o aniversário de 22 anos, completados três dias antes da festa na casa noturna. Ela estava com um grupo de amigos, formado por Vitória Saccol, Flávia Torres, Gilmara Oliveira, Mirela Cruz, Merylin Camargo, Luana Facco Ferreira, Rafaela Cruz e Maike dos Santos. Só Rafaela e Maike sobreviveram.
Andri e as amigas conseguiram sair da boate e inclusive foram encaminhadas ao hospital, mas não resistiram aos efeitos da fumaça tóxica. Por conta desse atendimento, os nomes delas ficaram por grande parte do dia 27 de janeiro de 2013 na lista de sobreviventes, mas Flávio e a esposa, Ligiane, não conseguiam localizar a filha nos hospitais. Foram encontrá-la apenas no Centro Desportivo Municipal, para onde os corpos das vítimas foram levados.
Último homenageado, Ruan Pendeza Callegaro, que tinha 20 anos, era estudante de medicina veterinária da Universidade Federal de Santa Maria.
Filho único da professora Rosane Callegaro e do contador Paulo Regis, ele estava na boate com a namorada, Ana Paula Anibaleto, que também morreu na tragédia, além de outros amigos colegas de curso. O grupo decidiu ir à Kiss após uma confraternização durante o dia 26.
— Desde 27 de janeiro de 2013 nós vamos sobrevivendo, dia após dia, às vezes mais fácil, às vezes muito difícil. Nós não temos mais aquela perspectiva de futuro: o Ruan era nosso futuro — afirma a mãe, Rosane.