Calar uma dor a torna pequena? Esquecer é descansar? E silenciar, resolve? Perguntas sem fim estampam cartazes espalhados por Santa Maria, uma cidade marcada pela dor da perda. Há uma década, a fumaça letal expelida pela boate Kiss matou 242 jovens e feriu outros 636, naquela que seria a maior tragédia da história do Rio Grande do Sul. Dez anos de luto, de raiva, de tristeza. De cansaço. Não se fez justiça.
Vi tudo de perto. Naquele 27 de janeiro, o telefone tocou na minha casa, em Porto Alegre, pouco depois das 5h. Acordei em sobressalto.
— Vamos mandar um carro do jornal te pegar para ir a Santa Maria. Uma boate pegou fogo. Parece que são 40 mortos — disse a voz angustiada do outro lado da linha.
Foram quatro horas de viagem e de assombro, ouvindo pelas ondas do rádio o relato de jornalistas estarrecidos. Os 40 viraram 70, depois cem, 150, 200. O número aumentava a cada atualização. Quando cheguei, encontrei uma cidade paralisada. Atônita e silenciosa como nunca foi.
Voltei muitas vezes depois. Agora, estou aqui de novo. Escrevo da calçada em frente ao que restou da Kiss. Na fachada, pintada de preto, vejo estrelas representando as vidas perdidas e uma pergunta: “Onde você estava em 27 de janeiro de 2013?”, questiona um cartaz. Palavras de ordem denunciam a injustiça.
Em dezembro de 2021, o julgamento de quatro réus finalmente ocorreu. Foi o mais longo da história do Estado, com dez dias de debates. Os acusados acabaram condenados e presos. Familiares de vítimas e sobreviventes choraram lágrimas de alívio. A decisão não mudaria o passado, mas seria a oportunidade de, enfim, virar a página.
Oito meses depois, veio o revés: por questões técnicas, o júri foi anulado. Os réus estão soltos. A indecisão persiste, inaceitável e revoltante.
Cansada, a comunidade virou as costas para as famílias atingidas. “Melhor esquecer”, defendem alguns. "Esquecer é descansar?”, grita o letreiro à minha frente, colado nas pedras diante da boate, para onde foram arrastadas as vítimas naquela madrugada de asfixia.
Hoje, a luta de quem sobreviveu e de quem perdeu familiares e amigos na arapuca chamada Kiss não é apenas por um desfecho judicial digno. É também para preservar a memória dos fatos. Esquecer não é descansar. Esquecer é permitir que o horror se repita. É morrer um pouco mais a cada dia, porque sugere que tudo foi em vão.
E você, onde estava em 27 de janeiro de 2013?