É um dos mistérios da vida o processo de tradução, no Brasil, dos títulos de filmes estrangeiros, como Crawl (2019), que virou Predadores Assassinos e recém foi adicionado ao menu da Netflix.
Tudo bem que não é bolinho a arte de rebatizar um filme, e claro que várias adaptações acertam ao não serem estritamente fiéis — Um Sonho de Liberdade, por exemplo, é muito mais evocativo do que seria Redenção em Shawshank, e Rede de Ódio, mais adequado do que Hater, O Odiador, que parece individualizar um problema coletivo. Mas, não raro, há alguma preguiça (Revenge: A Vingança), alguma subestimação do público (Match Point: Ponto Final) ou algum desvio absurdo — um caso emblemático é o da comédia Parenthood (paternidade, em inglês), que virou O Tiro que Não Saiu pela Culatra.
Predadores Assassinos é um desses filmes que foram renomeados de maneira duvidosa. Além de ser quase um pleonasmo (todo animal predador é, no fundo, um assassino, embora mate para se alimentar, e não nutrido por vingança, dinheiro, preconceito etc), o título perde o duplo sentido e a sutileza originais. Crawl refere-se tanto ao rastejar dos vilões da história, os jacarés gigantes que a chegada de um furacão faz emergir em uma cidadezinha da Flórida, quanto ao estilo de natação — a mocinha, Haley, é uma nadadora que terá de usar toda a sua técnica e todo o seu fôlego para sobreviver e salvar seu pai. Fora isso, Predadores Assassinos dá a impressão de que veremos um filme assumidamente escandaloso, sanguinário em excesso, quase um Sharknado. Mas não: seu parente mais próximo (muito próximo) é o cadenciado Águas Rasas (2016), em que Blake Lively enfrenta um enorme tubarão em uma praia deserta do México.
A loira da vez é a atriz inglesa Kaya Scodelario, filha de uma modelo brasileira, integrante do elenco principal da trilogia Maze Runner (2014-2018) e protagonista da série Spinning Out (2020). Com boa presença física, irônica na medida e com demonstrações realistas de nojo e medo, ela cativa desde as primeiras cenas — o que é fundamental em um filme praticamente todo concentrado na personagem. Haley, como a surfista vivida por Blake Lively em Águas Rasas, tem assuntos de família mal resolvidos. É conturbada a relação com o pai (Barry Pepper, de O Resgate do Soldado Ryan e À Espera de um Milagre, títulos proféticos!), outrora seu treinador.
Também a exemplo de Águas Rasas, que foi realizado pelo espanhol Jaume Collet-Serra (de A Casa de Cera e A Órfã), Predadores Assassinos tem como diretor um europeu especializado nos gêneros de terror e suspense. O francês Alexandre Aja traz no currículo títulos como Alta Tensão (2003), Viagem Maldita (2006) e Piranha (2010). Pega um pouco mais leve do que seu conterrâneo Pascal Laugier.
Como no filme do tubarão, Aja trabalha em uma escala claustrofóbica. Se Blake Lively ficou confinada a uma rocha, lutando contra o tempo para que a pedra não fosse submersa e, assim, facilitasse o ataque da fera, Kaya Scodelario tem que correr contra o relógio para se safar antes que o porão da casa seja inundado e vire um restaurante-piscina para os répteis criados a Toddy. Também em comum, ambos os filmes alternam a ação em espaços fechados com planos abertos que ajudam a dimensionar o tamanho da encrenca; ambos os filmes transformam eventuais mensageiros da esperança em presas devoradas.
Mas Predadores Assassinos consegue ser ainda mais eficaz naquilo a que, honestamente, se propõe: dar um susto danado na gente, nos deixar aflitos como se estivéssemos na pele de Haley. Não há nenhuma outra pretensão artística, os jacarés não são metáfora de nada, nem se atribui ao homem alguma culpa por mudanças climáticas que acarretam em furacões ou por avançar no hábitat dos animais: são só o terror da natureza. Eu perdi a conta de quantos vezes pulei na cadeira quando assisti no cinema. Alexandre Aja é um sacana que não avisa de onde e quando vem o perigo. Suas soluções são tão extremas quanto inesperadas. Potencializada pela concisão (são apenas 87 minutos), essa sensação de que tudo pode acontecer é um dos trunfos do filme.