As apostas no retorno do Brasil ao Oscar de melhor filme internacional após mais de 25 anos começaram antes mesmo da primeira exibição pública de Ainda Estou Aqui (2024), que nesta quinta-feira (7) estreia comercialmente nos cinemas do país.
Em primeiro lugar, há uma conexão com o último competidor nacional nessa categoria da premiação da Academia de Hollywood, Central do Brasil (1998), vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, do Globo de Ouro de longa estrangeiro e do Bafta de produção em língua não inglesa. O diretor é o mesmo, Walter Salles, um dos nossos realizadores de maior prestígio no Exterior, graças a títulos como Abril Despedaçado (2001), premiado em Veneza, Diários de Motocicleta (2004) e Linha de Passe (2008), ambos laureados em Cannes.
Fernanda Montenegro, que concorreu ao Oscar de melhor atriz em 1999, faz uma participação especial, e a protagonista de Ainda Estou Aqui é a filha dela, Fernanda Torres. Ela encarna Eunice, que, após o desaparecimento do marido, o engenheiro civil e deputado federal cassado Rubens Paiva (papel de Selton Mello), durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), é obrigada a se reinventar e traçar um novo destino para si e seus cinco filhos.
Esse tema, o dos anos de chumbo, foi abordado na penúltima indicação brasileira, com O que É Isso, Companheiro? (em 1998), e no último semifinalista, O Ano em que meus Pais Saíram de Férias (na edição de 2008). E o filme já tinha distribuição confirmada nos EUA, ou seja, já tinha visibilidade garantida entre a maioria dos votantes.
Os nove minutos e 46 segundos de aplausos no Festival de Veneza, no dia 1º de setembro, aumentaram as expectativas, turbinadas pela conquista do troféu Osella de Ouro para Murilo Hauser e Heitor Lorega pelo roteiro, que é baseado no livro homônimo publicado em 2015 por Marcelo Rubens Paiva. Simultaneamente, o nome de Fernanda Torres passou a aparecer entre as cotadas para o Oscar de melhor atriz. De qualquer forma, a Academia Brasileira cumpriu todo o seu protocolo até anunciar a escolha por unanimidade, em 23 de setembro, de Ainda Estou Aqui como o representante nacional na disputa por vaga na categoria internacional — a lista dos 15 semifinalistas sai no dia 17 de dezembro, e os cinco concorrentes serão revelados um mês depois.
A partir desta quinta-feira, o grande público poderá dosar para mais ou para menos sua torcida. Virtudes não faltam a Ainda Estou Aqui, mas não é o melhor filme brasileiro dos últimos anos.
Um dos trunfos é a sobriedade, prenunciada já nos créditos de abertura, com letras brancas que imitam a tipografia das máquinas de escrever se sobrepondo a um fundo totalmente preto. Walter Salles evita o dramalhão ou a exploração sádica da tortura, enquanto Fernanda Torres abraça a contenção, equilibrando estoicismo e esperança. O diretor de fotografia Adrian Teijido, o montador Affonso Gonçalves e o compositor australiano Warren Ellis são aliados fundamentais.
Já os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega fizeram mesmo por merecer o prêmio no Festival de Veneza. Eles conseguiram transformar um livro de memórias que vai e volta no tempo, oscilando entre a narrativa e o comentário, com derivações, associações e indagações, em um filme com estrutura linear e dramaturgia.
A história começa em dezembro de 1970, na época do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher por guerrilheiros que combatiam a ditadura. A primeira cena traduz visualmente o clima do período e a situação da protagonista. A placidez do banho de mar de Eunice na praia do Leblon, no Rio, é quebrada pelo sobrevoo barulhento de um helicóptero militar. Algo de ruim paira sobre a família Paiva. E privilégios socioeconômicos não são imunizantes diante da perseguição política.
Como se fosse um filme de terror que se desnuda aos poucos, no início Ainda Estou Aqui investe em cores, canções animadas e uma edição mais fragmentada para retratar o cotidiano alegre e amoroso, com portas e janelas sempre abertas, de Rubens, Eunice e os cinco filhos: a jovem Veroca (interpretada por Valentina Herzage na fase inicial e depois por Maria Manoella), as adolescentes Eliana (Luiza Kosovski/Marjorie Estiano) e Nalu (Barbara Luz/Gabriela Carneiro da Cunha) e as crianças Marcelo (Guilherme Silveira/Antonio Saboia) e Babiu (Cora Mora/Olivia Torres). Quando, no dia 20 de janeiro de 1971, agentes da repressão invadem a casa dos Paiva, as cortinas se fecham, a trilha sonora torna-se apenas instrumental, a montagem sinaliza uma passagem mais devagar do tempo: cada minuto parece uma eternidade para a protagonista enquanto espera a volta do marido, que teria sido levado apenas para prestar depoimento. Ela nunca mais o viu.
Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva também foi presa, mas retornou para casa. Então, teve de se dividir em muitas. Com as filhas mais velhas, podia falar sobre o que estava acontecendo, embora preferisse se esquivar; com os caçulas, optou pela dissimulação protetora. Precisou arranjar um sustento financeiro enquanto buscava informações sobre Rubens. Acreditou em ilusões o quanto foi possível e recusou-se a padecer.
— Nós vamos sorrir — diz ao fotógrafo que queria uma pose triste ou mais séria da família para uma reportagem sobre o desaparecimento.
Eunice não podia padecer, como mãe de cinco, mas seu sorriso também é uma declaração de dignidade, uma afirmação da resistência do amor e da lembrança, um desafio aos ditadores, aos torturadores e aos fascistas de plantão: conforme disse Fernanda Torres em entrevistas, sua personagem "é uma mulher que nunca quis se vitimizar em público, porque sentia que isso seria dizer para a ditadura que eles tinham vencido". A família Paiva virou símbolo do impacto devastador da violência do Estado sobre a sociedade. A luta pessoal de Eunice virou símbolo da luta coletiva pela redemocratização do Brasil — mas com universalidade suficiente para comover a Academia de Hollywood.
E Eunice vai sorrir outra vez, ainda que entre lágrimas, 25 anos depois, em 1996, quando finalmente a morte de Rubens Paiva foi reconhecida pelo Estado. A protagonista do filme repete as falas da personagem real:
— É uma sensação esquisita sentir-se aliviada com uma certidão de óbito. Durante muito tempo, eu e meus filhos ficamos na dúvida se Rubens estava morto ou não. Essa foi a forma de tortura mais violenta que impuseram às famílias dos desaparecidos políticos.
Ainda Estou Aqui terá mais um salto no tempo, para 2014, quando a matriarca da família já enfrentava havia muitos anos o Alzheimer — em uma cruel ironia do destino para com uma mulher que lutou incansavelmente pela memória e pela verdade. Nessas duas fases, a de 1996 e a de 2014, o filme assume um ritmo apressado, episódico, e cai em dramaticidade. Mas a brevíssima participação especial de Fernanda Montenegro torna-se eterna. Primeiro porque sintetiza o alerta contra o esquecimento dos mortos, dos desaparecidos e dos crimes cometidos pela ditadura. E, a exemplo do que demonstrara no epílogo de outro título brasileiro que tentou vaga no Oscar, A Vida Invisível (2019), a atriz nonagenária é eloquente sem dizer nada; com um mínimo gesto, provoca um terremoto emocional.
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