Nos 60 anos do golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil, a editora Nemo lançou no país Chumbo (2023), história em quadrinhos escrita e desenhada pelo francês Matthias Lehmann (368 páginas, R$ 119,80, tradução de Bruno Ferreira Castro e Fernando Scheibe).
A HQ revê os chamados anos de chumbo pelos olhos de uma família mineira fictícia, os Wallace, que tem personagens inspirados em parentes do autor — a mãe de Lehmann é brasileira. A trama começa na década de 1930, quando o patriarca, Oswaldo, dirige com mão de ferro sua empresa de mineração e está alinhado ao movimento de extrema-direita dos integralistas, que valorizavam o nacionalismo, defendiam a propriedade privada, pregavam os valores morais e combatiam o comunismo. Mais tarde, seus dois filhos homens (há duas irmãs) vão trilhar caminhos opostos: Ramires segue os passos do pai e torna-se apoiador dos militares; Severino, jornalista e escritor, é um ativista de esquerda.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Matthias Lehmann fala sobre a motivação para produzir Chumbo, compara os personagens da ficção aos da vida real e comenta a história política brasileira.
Você tem uma ligação afetiva com o Brasil, por causa de sua mãe. Tentando um certo distanciamento, pode falar sobre por que foi atraído a contar uma história sociopolítico-econômica sobre o Brasil?
Minha mãe é brasileira, e ela transmitiu a saudade do país para minhas irmãs e para mim. Transmitiu a cultura, os costumes, a língua, os hábitos alimentares, a gente ia visitar regularmente a família lá etc. E afinal das contas, também nos tornamos meio cidadãos do Brasil, já que temos dupla nacionalidade. Como tal, há muito tempo que me pergunto como fazer um "gesto cívico" com este país tão longe e tão próximo ao mesmo tempo, e HQs são para mim o melhor meio de ação que conheço. Uma ação cívico-artística de um certo modo, num momento em que o revisionismo sobre o período militar era promovido pelas mais altas autoridades do país (neste caso, o então presidente Jair Bolsonaro). Isso me deu vontade de fazer um projeto que vinha contraditar essas opiniões divulgadas pela extrema-direita e relembrar, ainda que através da ficção, a realidade factual.
Como surgiu a ideia de retratar as transformações do país pelos olhos de uma família e de refletir na trajetória de dois irmãos a tradicional polarização política nacional?
Inspirei-me de forma muito livre na história da família da minha mãe. Há uma série de anedotas ou acontecimentos que marcaram a história dela que peguei e transformei, e que vieram ajudar a estruturar a história. Então, meu objetivo era fazer com que esses acontecimentos familiares coincidissem o mais próximo possível com datas-chave da história brasileira. O microcosmo familiar é para mim o reflexo perfeito, muitas vezes exacerbado, dos problemas da sociedade. A questão da polarização é ainda mais óbvia aí. Provavelmente, já testemunhei varias discussões familiares no passado, heh heh.
Seu tio, Roberto Drummond, autor dos livros A Morte de DJ em Paris (1971) e Hilda Furacão (1991), morreu em 2002. O quanto você chegou a conviver com ele? Imagina o que ele acharia de ter servido como inspiração para o personagem Severino? Aliás, o quanto dele tem mesmo em Severino?
Eu via o Roberto quase todos os anos quando ia de férias para o Brasil quando era criança. Geralmente, a gente ia por dois meses ou mais durante as férias do verão francês. Ele não era o familiar que mais víamos, tinha essa imagem do tio famoso e ocupado, mas eu achava isso bastante fascinante. Ele era mais do tipo que saía para tomar um chope com meu pai do que levar as crianças ao parque, então a gente não era muito íntimos. Não sei o que ele teria pensado de Severino. Provavelmente que, se o Severino parece com ele, é apenas em alguns momentos de sua vida: sua carreira como jornalista, seu compromisso comunista, sua herança familiar, sua carreira como autor famoso e celebrado (a estátua em particular). Por exemplo, Roberto não se envolveu em luta armada, que eu saiba. Mas lembro de uma entrevista na qual ele diz que ele e seus amigos haviam conversado para brincar em fazer guerrilha na região de Itabira, ha ha. De certa forma, também me inspirei em mim mesmo para construir o personagem do Severino, porque afinal das contas a carreira de "autor" que conheço melhor ainda é a minha.
E o Ramires também é baseado em um parente?
Ramires é inspirado por outro tio, em vários aspectos, ainda que tudo seja muito romantizado e exagerado. Este tio, que era reacionário por princípio ou mesmo por hábito, não tinha nenhum compromisso real. Além disso, não creio que as diferenças ideológicas tenham realmente distanciado os meus dois tios. Provavelmente os problemas de dívidas do meu segundo tio foram um fator mais dramático do que a questão política.
O personagem Porfírio, que foi da Ação Integralista, depois virou torturador e por fim bicheiro, ilustra a leniência do Brasil para com os horrores da ditadura militar? No seu entendimento, por que o Brasil, ao contrário da Argentina, por exemplo, não levou a julgamento os crimes cometidos pelo regime ditatorial?
Porfírio é o exemplo perfeito da "banalidade do mal" que Hannah Arendt teorizou, mas também é, em muitos graus, bastante caricaturado, e ele encarna o vilão sem qualquer escrúpulo, até ao fim da historia. Afinal, não faltam depoimentos e entrevistas com ex-torturadores brasileiros nas quais eles raramente expressam remorso. Muito rapidamente, o regime ditatorial quis transformar a realidade histórica, escrevendo a sua própria narrativa, em particular alegando que o golpe de Estado era "preventivo". O medo de uma invasão comunista já estava bem ancorado nas cabeças em 1964, uma vez que já era o pretexto para o golpe de Estado de 1937, com o Plano Cohen. E hoje, este argumento é novamente utilizado pela extrema-direita para justificar as suas ambições golpistas. A lei de anistia certamente causou muitos danos ao Brasil. Essa ausência de julgamentos de dirigentes da ditadura deu a impressão de que nada de ruim aconteceu. Por exemplo, sempre percebi que na França há pouco conhecimento sobre a violência da ditadura brasileira, aqui as pessoas conhecem a situação argentina ou chilena mas nem tanto a do Brasil. Um dos únicos militares oficiais "condenados" foi Carlos Brilhante Ustra, em 2008, por sua atuação no DOI-CODI em São Paulo, mas essa condenação é realmente muito simbólica. Ainda lhe rendeu a oportunidade de escrever o livro A Verdade Sufocada (2006), que é uma leitura verdadeiramente lamentável. Acho uma pena que o presidente Lula tenha coibido a rememoração dos 60 anos do golpe de Estado, isso dá a sensação de que estamos perpetuando de certa forma essa cultura da anistia.
Já a personagem Iara é uma menina negra filha de empregada doméstica que depois vai se tornar professora de Literatura em uma universidade federal. A ideia era mostrar que, apesar dos pesares, existe no Brasil possibilidade de ascensão social?
Sim, para mim Iara é a verdadeira "heroína" da história, pois para viver essa ascensão social ela passa a vida na luta. O leitor pode sentir que ela nasceu em uma linhagem de sobreviventes, que passaram o tempo lutando. Além da questão da possibilidade de ascensão social, que é certamente uma realidade para uma minoria, mas que infelizmente não pode ser generalizada, foi importante para mim contrastar um pouco com o percurso dos Wallace e em particular do Severino e do Ramires, que passam o tempo reclamando da vida, mas que nasceram do lado direito da cerca: homens brancos e burgueses, ainda que experimentem um certo rebaixamento social. Iara sai com todas as desvantagens da sociedade, é uma mulher, negra e pobre.
Pode falar sobre o Zé Requeijão, o cartunista fictício que comenta a situação política?
Este personagem apareceu na história de forma quase inesperada. No final do capítulo 2, uma personagem conta uma piada, pensei assim: "Vou ilustrar isso com uma falsa charge, um pouco cafona". A partir daí, isso se tornou uma presença regular no livro, as piadas do Zé Requeijão. Obviamente, seu nome acentua o lado mineiro e rançoso. Aí criei o personagem do Jacaré, que é um chargista de esquerda, mais jovem, mais incisivo, que lembra a geração do Jaguar, Ziraldo etc. A geração Pasquim.
Do ponto de vista visual, percebe-se um grande carinho pela arquitetura, pela publicidade e pelo design gráfico do Brasil. Você pode falar um pouco sobre como foi o trabalho de pesquisa e desenho?
Queria contar visualmente a evolução do país e até mais de Belo Horizonte. Como a história se estende por quase 70 anos, com intervalos de cerca de 10 anos entre cada capítulo, tinha que ser coerente. Então usei todos os meios visuais que pude encontrar: arquitetura, moda, design, grafismo, publicidade, mobiliário urbano, imprensa são todos marcadores culturais de uma época. Fiz o máximo de pesquisa possível nessa direção.
Como você vê o Brasil de hoje? Como é a imagem do país na França?
Vejo o Brasil hoje como um país que luta para se reequilibrar depois que seu status democrático foi atacado por todos os lados. Parece extremamente complicado, mas, em última análise, isso me dá bastante esperança. Na França, a dinâmica é bem invertida, então prefiro o Brasil atualmente. Temo que o Brasil sempre terá uma imagem exótica para os franceses, mas isso está mudando. Paradoxalmente, o período Bolsonaro contribuiu muito para que os franceses voltassem a se interessar pela política brasileira, porque muita gente se perguntava quem era esse cara e como ele foi parar lá. Muitos leitores franceses me disseram que descobriram coisas graças a Chumbo e expressaram o desejo de aprofundar esse conhecimento.
Você acompanha os quadrinistas brasileiros?
Não o suficiente, infelizmente. Acompanho um pouco do que se faz, graças a autores como Marcelo D'Salete ou Marcello Quintanilha que hoje têm carreiras internacionais. Acompanho um pouco do que publica uma editora como a Veneta, entre outros, e graças às redes sociais posso descobrir novos autores, parece que o panorama está mudando. Também conheço Allan Sieber e Fabio Zimbres há muito tempo, por isso acompanho as novidades deles. Na próxima vez que for ao Brasil, pretendo aprofundar meu conhecimento dos quadrinhos brasileiros. Hoje em dia, há três autores franco-brasileiros: Clara Chotil, Nicolaï Pinheiro e eu. Espero que em breve outros e outras se juntem ao nosso pequeno clube, ha ha.