Pelo menos para o espectador gaúcho, Planeta dos Macacos: O Reinado (Kingdom of the Planet of the Apes, 2024) poderia ter um aviso de gatilho. Há uma cena capaz de perturbar uma população traumatizada. Ao mesmo tempo, como é característico da saga, o filme que entrou em cartaz nos cinemas na quinta-feira (9) convida a refletir sobre a arrogância humana em relação à natureza e às outras formas de vida na Terra.
O Reinado é o quarto título de uma das melhores franquias cinematográficas — ou o primeiro de uma nova trilogia. Presentes no Disney+ e no Star+, A Origem (2011), O Confronto (2014) e A Guerra (2017) revitalizaram, com sucesso de público (arrecadaram US$ 1,68 bilhão nas bilheterias) e de crítica, a clássica saga de ficção científica dos anos 1960 e 1970.
Vale relembrar: na distopia apresentada pelo cineasta Franklin J. Schaffner em O Planeta dos Macacos (1968, também no menu do Disney+ e do Star+), adaptação do romance homônimo escrito pelo francês Pierre Boulle, um astronauta (Charlton Heston) viaja até o futuro e descobre que a Terra foi devastada por uma guerra nuclear. Como uma crítica ao comportamento presunçoso e beligerante dos seres humanos, estes agora estão sob jugo de macacos inteligentes e falantes.
Na atualização, o contexto não era mais o da Guerra Fria, mas o da discussão sobre os limites da ciência e a ganância da indústria farmacêutica. A Origem reinventou o argumento do quarto dos cinco filmes da cinessérie anterior, A Conquista do Planeta dos Macacos (1972), que mostra o início da revolta comandada pelo chimpanzé César. No filme dirigido por Rupert Wyatt, César (personagem que combina as emoções e os movimentos do ator Andy Serkis com um trabalho magistral de computação gráfica) é um bebê salvo do sacrifício por um cientista que testa em primatas superinteligentes uma droga para combater a doença de Alzheimer, estimulando a regeneração das atividades cerebrais. Após um incidente com o vizinho do tal gênio da ciência, o símio intelectualmente bombado é confinado em um abrigo cruel, ambiente em que organiza sua feroz guerrilha. As cenas de ação não obscureciam o chamamento à reflexão. A animosidade entre homem e macaco e as próprias relações de poder e subserviência que se dão entre chimpanzés, gorilas e orangotangos espelhavam as tensões — raciais, étnicas, políticas, religiososas — que seguem convulsionando o mundo.
Dirigido por Matt Reeves, O Confronto se passa 10 anos após A Origem. Um vírus criado em laboratório por meio de experiências com macacos dizimou quase toda a humanidade _ e o restante decidiu que era uma boa ideia matar uns aos outros em vez de buscar uma solução. Enquanto isso, os símios, modificados geneticamente e imunes à infecção, são liderados por César até uma reserva florestal de São Francisco, na Califórnia. Lá, começam a erguer os pilares de uma nova civilização, baseada na união e no respeito mútuo. Só que esse equilíbrio tem prazo de validade, estipulado pelo reaparecimento de um grupo de humanos. O bonobo Koba, que havia sido cobaia no passado, tenta estimular César a exterminar os intrusos. Novamente, sequências de combate ou de tensão dividiam espaço com indagações existenciais: merecemos uma segunda chance ou chegou a vez de uma outra raça tomar conta do planeta?
Reeves também assinou A Guerra, que começa mostrando uma batalha na selva entre macacos e humanos. Após sofrer grandes perdas, os símios buscam um novo refúgio, enquanto César parte atrás de vingança contra o coronel McCullough, personagem interpretado com gosto por Woody Harrelson, que aqui faz citações escancaradas ao coronel Kurtz vivido por Marlon Brando no clássico Apocalypse Now (1979). Em sua jornada no meio da neve, César é acompanhado, contra sua vontade, por companheiros como o sábio orangotango Maurice e o gorila Luca, além de topar no meio do caminho com dois novos personagens: o simpático chimpanzé Bad Ape e uma garotinha silenciosa.
A guerra do título não faz referência apenas ao conflito bélico. Alude também à turbulência que existe entre os macacos, divididos entre o instinto animal e a índole racional.
— César ainda mantém seu otimismo, acha que pode encontrar uma solução pacífica. Mas as perdas que acaba sofrendo alimentam seu ódio e seu desejo de vingança. Vemos então uma grande mudança na personalidade dele. E não há vencedores em uma guerra — comentou Andy Serkis em entrevista a ZH.
Escrito por Josh Friedman — um dos roteiristas do filme Guerra dos Mundos (2005) e das séries O Expresso do Amanhã (2020-20222) e Fundação (2021-2023) — e dirigido por Wes Ball, da trilogia Maze Runner (2014-2018), Planeta dos Macacos: O Reinado está ambientado 300 anos após a morte de César. Para muitos, ele é só uma lenda. Alguns, como o orangotango Raka, buscam preservar a História, procurando disseminar a existência e os ensinamentos do antigo líder. E há quem deturpe as palavras de César, subvertendo sua figura para usá-la como instrumento de poder: é o caso do tirano bonobo Proximus (personagem de Kevin Durand), que prega a união dos macacos em causa própria.
Mas como todo bom vilão — ou como notórios líderes populistas —, Proximus tem um discurso que aposta no medo e que faz sentido.
Alerta de SPOILERS nos parágrafos seguintes.
O déspota escraviza clãs de macacos porque precisa de um grande contingente na cidadela que montou à beira-mar — uma citação visual ao emblemático final do Planeta dos Macacos de 1968. O objetivo é explodir a porta de um bunker militar, onde o armamento disponível oferecia segurança diante dos humanos. Que, como prova a personagem Nova (outra referência à saga original), vivida por Freya Allan, mentem, são traiçoeiros, seguem achando que estão em primeiro lugar no reino animal. Aliás, muitos dos desastres ambientais acontecem porque o homem tentou moldar a natureza, em vez de conviver com ela; impôs suas vontades ao verde e à água, em vez de respeitá-los e aprender com eles.
O herói da trama traz no nome uma pista tanto sobre o clímax do filme quanto sobre a insuspeitada relação de O Reinado com a tragédia que acomete o Rio Grande do Sul. O jovem e corajoso chimpanzé (papel de Owen Teague) se chama Noa, uma corruptela de Noah, como estadunidenses e ingleses se referem a Noé. Tal qual o personagem bíblico, Noa terá a missão de salvar os macacos durante um dilúvio. A cena perturba, porque é a ficção hollywoodiana emulando o drama real dos milhares de gaúchos que precisaram fugir às pressas da fúria das águas.