Como ler hoje uma história em quadrinhos produzida quase 120 anos atrás? É o caso de Little Nemo in Slumberland, obra escrita e desenhada por Winsor McCay que estreou em 15 de outubro de 1905 no jornal estadunidense New York Herald, e que ilustra dois volumes publicados entre 2022 e 2023 pela editora Figura, com 420 HQs traduzidas por Cesar Alcázar (apenas o segundo, que compreende o período de 1910 a 1914, está disponível, por R$ 265).
O primeiro requisito é estar ciente de que essa história em quadrinhos foi produzida quase 120 anos atrás. Eram outros tempos, tanto do ponto de vista meramente artístico — era praxe, por exemplo, descrever com palavras o que os desenhos já mostravam — quanto no contexto social: o racismo, a xenofobia e o machismo, só para citar três pragas devastadoras e difíceis de combater, não só grassavam; podiam também ser difundidos.
"Analisar a produção cultural de uma época sob o prisma e o pensamento da atualidade é um exercício impróprio, muitas vezes injusto e quase sempre inútil porque irreversível, ainda mais em se tratando de obras cujos autores já faleceram", resume no posfácio do primeiro volume o pesquisador brasileiro Nobu Chinen, que é descendente de japoneses e autor do livro O Negro nos Quadrinhos no Brasil (2019). "Condenar a representação que McCay faz de Impy como racista é ignorar que ser racista não era socialmente reprovável como hoje. Não se trata de amenizar um comportamento abominável e criminoso, mas compreender o contexto da época e suas condições de produção e consumo."
Assinado pelo jornalista, crítico e tradutor Érico Assis, esse posfácio é imprescindível para a leitura de uma história em quadrinhos produzida quase 120 anos atrás. O autor de Balões de Pensamento (2021) e Balões de Pensamento 2 (2022) fez um trabalho tão minucioso quanto delicioso. Vai das controvérsias sobre a data de nascimento de Winsor McCay às controvérsias — à luz de hoje, é claro — sobre a caracterização das personagens femininas. Apresenta as influências assimiladas pelo criador de Little Nemo e as contribuições de McCay para a evolução dos quadrinhos e dos desenhos animados. Recupera as sucessivas tentativas de emplacar uma tira de sucesso (o cartunista já exibia entusiasmo por explorar o potencial das HQs em Little Sammy Sneeze, de 1904); o estrelato na época da disputa acirrada entre os jornais de Joseph Pulitzer (que batiza o principal prêmio da imprensa e da literatura nos EUA) e de William Randolph Hearst (a inspiração para o Cidadão Kane de Orson Welles); os casos de plágio, reproduções toscas ou até misturebas (como as da revista brasileira Tico-Tico); e o resgate junto à indústria e a crítica (entre os fãs que prestaram homenagens e citações, estão Walt Disney e Neil Gaiman, além de Brian Bolland e Vittorio Giardino, que fizeram versões eróticas).
Apesar de ser uma das HQs mais referenciadas, Little Nemo talvez não seja tão conhecida pelo leitor brasileiro. Pelo menos, não em sua forma original. Segundo a Figura, esta "é a primeira vez que se edita em grande formato, a cores e em ordem cronológica". Com 39 centímetros de altura (só cabe deitada nas estantes regulares) e 30 centímetros de largura, os dois volumes permitem apreciar o que há de melhor nas aventuras de um menino pelo mundo dos sonhos — ou pesadelos.
Conforme cita Érico Assis, o roteirista belga Thierry Smolderen, no livro Naissances de la Bande Dessinée (2010), sintetizou a genialidade de McCay e o motivo de Little Nemo ser tão admirada, a ponto de ser considerada a primeira obra-prima das HQs, o primeiro trabalho a ser lembrado não apenas pelo pioneirismo, mas pela qualidade. Little Nemo, diz Smolderen, "lança o leitor em um espaço fluído, uma experiência em primeira pessoa e em variação constante. Era esse o sentido dos layouts mutantes de McCay: diagramar a experiência do parque de diversões, onde tudo conspira para provocar reações musculares descontroladas e impele o público a estados de comicidade a partir do chão que treme, de plataformas que giram e assim por diante. Desde as primeiras páginas, a Terra dos Sonhos de Nemo era pensada para provocar estas sensações — tontura, vertigem, cair, correr, escorregar — e transformar o processo de leitura em uma aventura tanto pessoal quanto imersiva".
A comparação com um parque de diversões é elogiosa, mas pode apontar para um ponto negativo de Little Nemo: a previsibilidade, o caráter repetitivo. Assim como a roda-gigante tem hora certa para parar, assim como o passeio na montanha russa tem sempre o mesmo itinerário, todas as histórias do pequeno Nemo terminavam com o guri acordando de seu sonho.
Mas aí, nessa última palavra, está a chave para entender o impacto de Little Nemo quase 120 anos atrás. Embora não haja indícios de que Winsor McCay tenha lido Sigmund Freud ou conhecesse a psicanálise (o livro A Interpretação dos Sonhos só recebeu tradução para o inglês em 1913), o quadrinista dava vida a fantasias irrealizáveis e desejos reprimidos. Materializava o inconsciente, sendo precursor do surrealismo, movimento artístico que só ganharia nome e conceitos mais de uma década depois, em Paris.
Quase 120 anos depois, as viagens oníricas de Nemo podem não surpreender o leitor e até aborrecê-lo. Mesmo depois de abandonar as legendas que se tornavam redundantes ao se sobreporem à narrativa visual e aos balões de fala, o texto jamais se destaca. Com raríssimas exceções. Por exemplo, há uma ótima tirada cômica na página de 31 de março de 1907. Quando Nemo e seus coadjuvantes estão para visitarem a sala dos tesouros de um navio pirata, um tripulante diz a eles que "isso é uma grande honra. Ninguém entrou nessa sala antes além do capitão em pessoa". O sarcástico Flip retruca:
— É uma honra pro capitão nos deixar entrar.
Em um dos grandes momentos, McCay permite-se ser mais reflexivo do que o habitual na descrição das aventuras. No dia 31 de dezembro de 1905, Nemo recebe a visita do Pai do Tempo e empreende uma jornada ao futuro movida pela curiosidade infantil e marcada pelo medo adulto.
Na página seguinte, porém, a 7 de janeiro de 1906, surge o pesadelo dos estereótipos e preconceitos. "Tem índios por toda a parte. Vou pegar essa arma e acabar com eles", diz Nemo ao avistar "peles-vermelhas" (apelido pejorativo dos indígenas da América do Norte usado por McCay). Nemo, não custa lembrar, é o herói, o personagem com quem o leitor deve se identificar. Como escreveu no site Balbúrdia a pesquisadora e especialista em quadrinhos e questões de gênero Dani Marino, a frase do guri de seis anos foi escrita por um dos tantos adultos "que contribuíram para a perpetuação de uma cultura que até hoje assassina povos originários em diversos países e ainda construíram um mito do salvador branco com amplo suporte da indústria cultural".
O que sobrevive muito bem em Little Nemo, mesmo após quase 120 anos, é a arte esplendorosa de Winsor McCay, que bebeu bastante da Art Nouveau que havia nascido na Europa alguns anos antes e que influenciava a arquitetura e a produção gráfica. McCay enche as páginas de linhas curvas e ornamentos, é detalhista na representação de castelos e animais, joga com as cores: numa prancha, elas podem ser abundantes; outra pode ser quase monocromática, com direito a cenários vazios e fundo branco.
Sobrevive muito bem também o seu ímpeto de cruzar fronteiras, fossem as físicas ou as da imaginação. O segundo volume lançado pela Figura começa com a sequência mais longa de Little Nemo, quando, a partir de 2 de janeiro de 1910, o protagonista e seus amigos empreenderam uma viagem a bordo do dirigível da Princesa que durou 16 meses e passou por muitas cidades dos EUA, a Antártida e o planeta Marte. Entre 8 de setembro de 1907 e 13 de outubro do mesmo ano, Nemo e sua turma, ao fugirem de gigantes avermelhados, tornam-se eles próprios crianças gigantescas que escalam os edifícios de uma cidade como se estivessem no trepa-trepa de uma pracinha.
Por fim, sobrevive muito bem em Little Nemo o espírito aventureiro de McCay em relação aos quadrinhos em si. Ele abriu caminhos ao experimentar as possibilidades estéticas e formais. Vide a terceira página, publicada originalmente em 29 de outubro de 1905: quando Nemo sobe em pernas de pau, os quadros vão sendo gradativamente aumentados no seu comprimento para mostrar a altura alcançada pelo personagem. O processo se inverte para ilustrar a sua queda.
É do dia 26 de novembro de 1905 uma das imagens mais famosas, a do peru gigante — era a semana do Dia de Ação de Graças — retratado em um grande círculo que se abre no meio da página. Outro célebre exemplo animal é o do elefante rico em texturas que quadro a quadro vai se aproximando, como se fosse romper a barreira do papel e atropelar o leitor, em página publicada no dia 23 de setembro de 1906.
Comparativamente, no segundo volume a arte é até mais caprichada, mas há menos experimentação. Ainda assim, existe pelo menos uma página — a de abertura, com a data de 2 de janeiro de 1910 — na qual Winsor McCay brilha ao brincar com as ferramentas dos quadrinhos. Para ilustrar os gritos incessantes e altos do Rei Morpheus, que está com o pé direito enfaixado, McCay abarrotou os quadros de balões enormes que tapam e sufocam os personagens ou se parecem com nuvens que cobrem o céu. Em meio a súplicas ("Doutor Pílula!") e ameaças ("Rápido, tragam o Doutor Pílula ou transformarei todos em carne moída!"), há interjeições de dor como "Oh" e "Aaau". Esta última, o derradeiro quadrinho revela, é na verdade o latido da cachorrinha Minnie, que acaba por despertar Nemo de seu sonho.