"Quando não é horrível, a vida é magnífica!" Síntese sublime da complexidade e da transitoriedade da vida, esta frase dita por um trabalhador veterano de um estaleiro para o protagonista de O Combate Cotidiano é uma das tantas reflexões emolduráveis presentes na história em quadrinhos escrita e desenhada pelo francês Manu Larcenet. Publicada originalmente em quatro álbuns, entre 2003 e 2008, a HQ foi lançada no Brasil no ano passado pela editora Pipoca & Nanquim, em um único volume (tradução de Fernando Paz, 252 páginas, R$ 129,90).
Trata-se do segundo Larcenet a sair no país. O primeiro foi O Relatório de Brodeck, em 2018, pela mesma editora. À primeira vista, as duas HQs são bastante diferentes.
Enquanto O Relatório de Brodeck é uma adaptação — do romance homônimo assinado pelo cineasta e escritor Philippe Claudel —, O Combate Cotidiano é a obra mais pessoal de Larcenet, quadrinista nascido em 1969 e premiado no Festival de Angoulême justamente por esta HQ. Enquanto naquela a arte é expressionista e em preto e branco, nesta o autor adota um estilo cartunesco e a cores (produzidas em parceria com seu irmão, Patrice). Enquanto a trama anterior foi ambientada no que parece ser uma aldeia europeia pós-Segunda Guerra Mundial, investigando como o nazismo prosperou e como homens se transformaram em monstros — mas, graças à imprecisão geográfica e temporal, servindo também de alerta contemporâneo —, a de agora se passa nos dias de hoje, retratando fantasmas bem atuais: a ansiedade, a precarização do trabalho, a ascensão da extrema direita.
O ofício do protagonista de O Combate Cotidiano é um dos pontos de ligação com O Relatório de Brodeck: Marco é um jovem fotógrafo que se especializou em registrar guerras mundo afora. Cansado de documentar horrores, ele decide dar um tempo, o que inclui trocar a cidade pelo campo. Mas há horrores dos quais Marco não consegue fugir.
Aí está outra conexão entre as duas obras. Se em O Relatório de Brodeck Manu Larcenet oferece um espelho coletivo, examinando como a sociedade se comporta longe dos olhos dos outros, em O Combate Cotidiano Marco vai para longe dos olhos dos outros e acaba obrigado a mirar-se num espelho.
Os desenhos de traço cômico servem como amenizadores das sombras refletidas. E não raro a imagem que Marco vê é distorcida por suas convicções — ou seriam intransigências? Ou seriam preconceitos? Ou seriam infantilidades?
Talvez o fotógrafo só não esteja cego porque aprendeu a enxergar a si próprio durante oito anos de terapia. Ele acha que está pronto para ter alta, mas seu terapeuta retruca:
— O papel do terapeuta não é limitar um indivíduo ao seu estado patológico. Porém... Creio que podemos dizer que você está desenvolvendo comportamentos profundamente obsessivos, acompanhados de neuroses diversas, obsessivas também. Então? Vamos marcar uma consulta para o mês que vem?
Pois bem: mesmo na tranquilidade e no silêncio da zona rural, mesmo afastado dos mortos e dos vivos, com exceção de seu gato (cujo nome acaba gerando tanto uma passagem algo humorística quanto mais uma relação com O Relatório de Brodeck), mesmo nessas condições Marco sofre uma crise de ansiedade. É um dos combates cotidianos que precisa encarar.
— Agora, a mente só funciona aos trancos, e o corpo não responde mais normalmente. É um desespero insuportável, porque sugere uma disfunção íntima, inexplicada e incontrolável — ele descreve num monólogo interior na página 32. — O máximo que eu consegui foi aprender a conviver. E aprender a conviver significa sentir um medo irracional de que, a qualquer momento, tudo vai dar errado: na padaria, no carro, durante uma reportagem, na casa dos amigos... Significa nunca mais ter sossego até descobrir o fator que a desencadeia. Tudo o que conseguir foi adaptar a minha vida ao redor dessa desordem aleatória. Estou sujeito a crises de ansiedade desde a infância. Mas elas tinham outros nomes: espasmos, hipoglicemia, nervosismo, o mal-estar vago... Hoje consigo dar a elas um nome definitivo. Pode não facilitar a vida, mas já é alguma coisa!
O próprio Marco não é de facilitar a vida. Ele começa a namorar com uma veterinária, Émilie, mas não consegue enfrentar temores, lidar bem com a proximidade, planejar um futuro ou uma família, entender que o amor "não tem nada de confortável", como ensina um importante coadjuvante. Outro combate cotidiano é travado no campo das relações pessoais. Não faltam empatia nem ternura ao protagonista de Larcenet, vide seu companheirismo com o irmão, Georges, e com a turma do estaleiro que resolve fotografar. Mas, como diz o escritor, cantor e ator francês Magyd Cherfi no prefácio da HQ, "basta entrar em contato com o outro para que a guerra comece".
Esse outro pode ser Émilie, o pai de Marco, a curadora de uma galeria, um vizinho idoso que gosta de pescar, um trabalhador que decidiu votar na extrema direita... Manu Larcenet evita ser unilateral nos duelos verbais. Quando Marco ataca o amigo que virou eleitor do radical e xenófobo Jean-Marie Le Pen, o que ouve resume a diferença entre o idealismo e a vida na prática e ajuda a explicar como a esquerda perdeu terrenos supostamente cativos:
— Cala a boca! Não me vem com esse seu discurso de parisiense! Você não sabe mais como as coisas são por aqui! Não sabe mais como a gente vive! (...) Estão tirando devagarinho o pouco que me resta. A mulher, a menina, o trabalho, a casa, o dinheiro... É só problema. Eu não tô vendo saída. Tô com medo. Então, a verdade é que o primeiro que passa e diz que isso pode mudar tem o meu voto.
Uma das grandes virtudes de O Combate Cotidiano é a fluidez com a qual Larcenet mescla as discussões políticas com aquelas de foro mais íntimo. O jornalista, crítico e tradutor Érico Assis, que recomendou a HQ na sua newsletter Virapágina, resumiu bem: "O pessoal e o social nunca se separam, tudo acontece ao mesmo tempo, e a vida é isso".
A certa altura, Marco rompe amizade com um ex-militar absolutamente arrependido das mortes e das torturas infligidas na Guerra da Argélia — um personagem que bem poderia estar em O Relatório de Brodeck, na qual um dos aldeões pede ao protagonista: "É preciso que aqueles que lerem seu relatório compreendam e perdoem". O tal personagem de O Combate Cotidiano afirma: "Eu carrego a cruz de um homem que não sou mais, mas nem por isso ela pesa menos". As duas HQs perguntam: o passado condena para sempre?
É Émilie quem oferece uma resposta:
— Que ética de merda é essa que te faz sacrificar um amigo por causa de um passado ao qual ele renunciou definitivamente? Ética é uma coisa boa, a gente precisa ter... Mas é um pouco como a lógica: simplista demais pra se aplicar nas relações humanas.
Marco pondera: às vezes, temos de ser radicais. Tem coisas que não podemos esquecer. Émilie prossegue, com uma argumentação desconcertante:
— O radicalismo também é uma arma dos fascistas. E ninguém está pedindo para esquecer nada! Mas a gente muda, evolui, se arrepende. Você tem o direito de ter uma opinião, mas acho que julgar a vida das pessoas vai um pouco além da sua jurisdição, xerife.
Estamos sempre julgando os outros, não? Às vezes, culpamos, às vezes, absolvemos. Um outro debate de O Combate Cotidiano que é muito contemporâneo, sobretudo nestes tempos de vigilância digital e exposição nas redes sociais, é o da confusão ou separação entre a obra e o artista. Segundo Marco, foi graças à psicanálise que ele conseguiu dissociar: "É possível ser um grande artista e um completo imbecil. Podemos fazer coisas lindas sendo, nós mesmos, muito feios. Podemos captar a beleza do mundo no papel sem jamais fazer parte dela. É estranho: como o que fazemos pode nos superar a esse ponto? Se a obra é melhor do que o artista, por que ela não o melhora? A mão roça o divino, enquanto os pés chafurdam na mediocridade. Mesmo preferindo um ou outro, o mensageiro e a mensagem talvez nunca se confundam. Meu açougueiro é um homem abominável, mas o presunto cru que ele faz é um momento de puro êxtase".
E, às vezes, estamos tão perto da pessoa que o julgamento fica turvo, tão turvo a ponto de exagerarmos qualidades ou defeitos e embaralharmos os papéis. Somos confrontados com um espelho muito familiar, no qual enxergamos a complexidade e a transitoriedade da vida, um combate entre a certeza — ou o medo — da finitude e o desejo (ou, de novo, o medo) da continuidade. "Temos que ter filhos, Marco. Isso nos torna homens melhores", afirma o pai do protagonista logo depois de confessar que pensou várias vezes em abandonar a família quando o filho nasceu. Mais adiante, é Marco quem reflete sobre como vemos nossos pais e como eles são de verdade: "Pensar em ser pai é não apenas resignar-se à ideia da própria morte, mas também renunciar à vida de homem falível para se tornar uma fantasia com direito apenas ao erro".