Muitos leitores de quadrinhos esperavam por esta sexta-feira, 5 de agosto de 2022, havia mais de 30 anos. Desde a estreia de Sandman, personagem criado pelo escritor Neil Gaiman e pelos artistas Mike Dringenberg e Sam Kieth, em novembro de 1988, sonhavam com uma adaptação para cinema ou TV. O dia chegou: já estão disponíveis na Netflix os 10 episódios da primeira temporada — e uma segunda pode ser anunciada em breve.
Sandman, a HQ, teve 75 edições em sua série original, publicada até março de 1996. "Todas as boas histórias terminam", justificou à época Gaiman, que depois retomaria o universo do personagem em obras como Noites Sem Fim (2003) e Prelúdio (2013-2014). Ao lado de títulos como Watchmen (1986-1987), de Alan Moore e Dave Gibbons, provocou uma revolução nos gibis de super-herói ao mixar rock e cinema, terror e diversidade sexual, Shakespeare e mitos gregos.
A transformação começou pelo visual do protagonista. Surgido em 1939 em revistas da DC Comics, Sandman era um vigilante de chapéu, terno verde, capa roxa, máscara amarela e pistola com gás para dormir. O personagem de Gaiman, Dringenberg e Kieth se parece com os cantores Robert Smith e Peter Murphy, das bandas góticas The Cure e Bauhaus. Para escrever as tramas, o roteirista inglês — hoje com 61 anos — inspirou-se na fábula de Hans Christian Andersen sobre o homem que sopra a areia dos sonhos e na mitologia grega, de onde vieram os Perpétuos, sete irmãos que personificam o Sonho, a Morte, o Destino, o Desejo, o Desespero, o Delírio e a Destruição.
Sandman, a série, tem supervisão do próprio Gaiman, que gosta de dizer que, por três décadas, sua missão foi impedir más adaptações. O autor é nome recorrente no mundo da TV, do streaming e do cinema — baseiam-se em obras suas Stardust: O Mistério da Estrela (2007), Coraline e o Mundo Secreto (2009), Lúcifer (2016-2021), Deuses Americanos (2017-2019) e Belas Maldições (Good Omens, 2019-2022), por exemplo. Agora que produções como Game of Thrones (2011-2019) consolidaram o gênero da fantasia, agora que os efeitos visuais estão à altura do mundo dos sonhos, onde tudo é possível, chegou a vez do chamado Morpheus — que se não dispõe dos dragões alados, como Daenerys Targaryen, tem entre seus coadjuvantes uma gárgula fofinha; que se não precisa enfrentar os Caminhantes Brancos, tem de empreender uma visita ao Inferno.
Desenvolvidos por Gaiman, David S. Goyer e Allan Heinberg (e com participação da gaúcha Liciani Vargas na equipe de efeitos visuais), os 10 episódios da temporada adaptam os dois primeiros arcos dos quadrinhos, Prelúdios & Noturnos e Casa de Bonecas. O começo é encantador. Enquanto acompanhamos o sobrevoo de um corvo, que das paisagens da Inglaterra de 1916 ruma para um território fantástico, até ingressar em um palácio majestoso onde há um sujeito com cabeça de abóbora e uma vasta biblioteca (que, mais tarde saberemos, abriga bilhões de livros nunca escritos, apenas sonhados), ouvimos a sinistra música composta por David Buckley e uma narração em voz áspera e pausada:
"Nós começamos no mundo desperto, que a humanidade insiste em chamar de mundo real, como se os sonhos não tivessem efeito nas escolhas que vocês fazem. Vocês mortais se ocupam com seu trabalho, seus amores, suas guerras, como se apenas a vida desperta importasse. Porém, existe outra vida à espera quando vocês fecham os olhos e entram no meu reino. Pois eu sou o Rei dos Sonhos e Pesadelos. Quando o mundo desperto deixa vocês carentes e cansados, o sono os traz aqui para encontrarem liberdade e aventura. Para encararem seus temores e fantasias nos sonhos e pesadelos que eu crio e devo controlar, a fim de que eles não os consumam e destruam. Esse é o meu propósito e a minha função. Ou era, até que deixei meu reino para perseguir um Pesadelo renegado".
A partir daí, vamos descobrir que, enquanto procurava o Coríntio (Boyd Holbrook, o Steve Murphy de Narcos) — que, na verdade, terá papel mais proeminente nos episódios finais da temporada —, Morpheus foi aprisionado por um ocultista, Roderick Burgess (Charles Dance, o Tywin Lannister de Game of Thrones) — que, na verdade, queria capturar a Morte para pleitear a ressurreição de seu filho. Um século depois, Sandman partirá em busca de seus artefatos: a algibeira (onde guarda a areia dos sonhos), o elmo e o rubi.
Por ter lido e relido os quadrinhos, sou suspeito para falar, mas acredito que essa introdução cumpra bem um duplo objetivo: o de satisfazer (ou tranquilizar) os fãs fervorosos quanto à fidelidade da adaptação e o de apresentar aos neófitos o universo de Sandman. Só que o texto também transparece um problema da série, que será agravado quando surgir em cena o ator inglês Tom Sturridge (o Allen Ginsberg do filme Na Estrada, de Walter Salles). Sua caracterização física é ótima, do corpo branco e esquálido aos cabelos desgrenhados, mas a voz torna o personagem etéreo além da conta, e o costumeiro biquinho torna o personagem antipático além da conta — sim, Morpheus sabe ser esnobe e, por que não dizer?, babaca, mas Sturridge não consegue modular sua interpretação de modo a emprestar espanto, vergonha ou emoção quando necessário.
Ainda bem que o ator está rodeado por um elenco talentoso. Entre os destaques, estão David Thewlis (da minissérie Landscapers), que interpreta John Dee, Gwendoline Christie (indicada ao Emmy pela Brienne de GoT), que faz Lúcifer, Kirby Howell-Baptiste (dos seriados Barry e Killing Eve), no papel da Morte, e Mason Alexander Park, artista não-binário que encarna Desejo. As escalações para estes três últimos personagens provocaram polêmica entre os "puristas" — eufemismo para machistas, racistas etc. —, uma vez que, nos quadrinhos, Lúcifer é homem, e a Morte, branca como a neve. Já a controvérsia sobre Desejo é incompreensível, pois desde a origem Neil Gaiman a criou como alguém com os predicados de mais de um gênero, uma pessoa que, nos dias de hoje, seria definida como não-binária (termo que ainda não era corrente no final da década de 1980).
Porém, vou ter de fazer coro aos queixosos em relação à adaptação do mago urbano John Constantine, que virou Johanna Constantine (Jenna Coleman, protagonista da série Vitória: A Vida de uma Rainha). Não propriamente por causa da troca de gênero (motivada por uma questão referente a direitos autorais, uma vez que John não é uma criação de Gaiman), mas porque essa mudança diluiu características essenciais do personagem, como o cinismo, a arrogância e o egoísmo. Fica o alerta sobre terceiro episódio.
Por outro lado, o quarto, o quinto (ambos dirigidos por Jamie Childs) e o sexto (de Mairzee Almas) capítulos revelam-se os pontos altos da primeira temporada. Creio que não só por materializarem antigos sonhos dos leitores — personagens clássicos e cenas marcantes dos quadrinhos enfim ganham carne, osso e movimento. Mas também pelo mergulho em um território inóspito (o Inferno), pela tensão deflagrada quando as mentiras deixam de ser contadas (no meticuloso e angustiante episódio da lanchonete, desde já um dos melhores de 2022) e pelas reflexões sobre a vida e a morte que pautam um passeio de Sandman por Londres (na companhia da Morte) e através dos séculos (sim, Hob Gadling, um dos favoritos do público das HQs, dá as caras, interpretado por Ferdinand Kingsley).
A estreia de Sandman na Netflix poderia ter parado por aí. O acréscimo do arco Casa de Bonecas, introduzindo novos personagens (nem todos bem desenvolvidos) e espichando o total para 10 episódios, dá a sensação de que temos duas temporadas espremidas em uma, mesmo que haja conexões entre as tramas. Nos meus sonhos, o grand finale seria aquela cena em que Desejo, na Galeria dos Perpétuos, faz a uma de suas irmãs um anúncio ameaçador, dando o gancho para uma segunda temporada igualmente curtinha e mais concentrada do que a primeira se mostrou.