De Santa Maria para o Sonhar: Sandman, a aguardada série da Netflix que adapta as histórias em quadrinhos escritas por Neil Gaiman, é o mais recente projeto no currículo de Liciani Vargas, 35 anos, gaúcha que trabalha com efeitos visuais e que está desde 2018 radicada no Canadá — atualmente, na empresa chamada Rodeo Effects.
A produção estreia na plataforma de streaming no dia 5 de agosto, com 11 episódios em sua primeira temporada, que vai ser baseada nos arcos iniciais da HQ publicada pela DC Comics entre 1989 e 1996: Prelúdios e Noturnos e Casa de Bonecas. O britânico Gaiman é um dos criadores da versão televisiva, ao lado de David S. Goyer, um dos roteiristas da trilogia do Batman comandada por Christopher Nolan, e Allen Heinberg, coautor do script do filme Mulher-Maravilha (2017). O principal diretor é Jamie Childs, que assinou quatro capítulos do seriado de aventura e fantasia His Dark Materials entre 2019 e 2020.
O ator Tom Sturridge interpreta Sonho, que percorre diferentes mundos e linhas do tempo após ser aprisionado por engano no lugar da irmã, Morte (Kirby Howell-Baptiste) — seus outros irmãos são Delírio, Desejo, Desespero, Destruição e Destino. A sinopse oficial diz o seguinte: "Existe um outro mundo esperando por nós quando fechamos os olhos e dormimos. Um lugar chamado O Sonhar, onde Sandman, o Senhor dos Sonhos, dá vida aos nossos medos e fantasias mais profundos. Mas quando Sonho é capturado inesperadamente e mantido como prisioneiro por um século, sua ausência dá início a uma série de eventos que mudarão o mundo dos sonhos e o mundo desperto para sempre. Para restabelecer a ordem e consertar os erros que cometeu durante sua longa existência, Sonho precisa se aventurar por diferentes mundos e linhas do tempo, revendo velhos amigos e inimigos, e encontrando novas entidades, tanto cósmicas quanto humanas". O trailer já divulgado mostra também outros integrantes do elenco, como Boyd Holbrook (o vilão Coríntio) e Jenna Coleman (Johanna Constantine, uma antepassada do detetive sobrenatural John Constantine).
Por telefone, Liciani conversou com a coluna sobre uma área da produção de filmes e séries — a dos efeitos visuais — que muita gente admira, mas não faz a menor ideia de como a mágica acontece.
O público leigo sabe reconhecer os efeitos visuais, pois os grandes campeões de bilheteria, como Avatar, as franquias Star Wars e Harry Potter e os filmes de super-herói, dependem muito disso. Quem vê as aventuras da DC e da Marvel, por esperar as cenas pós-créditos, já percebeu que há um exército de profissionais por trás da magia de cada cena. No site IMDb, você aparece como digital compositor, ou seja, compositora digital, em títulos como Liga da Justiça (2017), Vingadores: Guerra Infinita (2018), Duna (2021) e as séries Altered Carbon (na temporada de 2020) e Fundação (2021). Pode explicar como é seu trabalho?
É meio complicado de explicar, mas vou tentar. Existem vários setores na área de efeitos visuais. Na parte criativa, pode-se trabalhar em 3D, CGI (computação gráfica), modelagem, animação, textura, os effects propriamente ditos, como inserir simulação de água ou fogo. O meu campo de atuação é pegar tudo o que foi feito e integrar todos os elementos filmados em diferentes ambientes ou criados digitalmente para dar realismo, tornar aquilo o mais orgânico possível. Deixar a cena parecendo que foi filmada daquela forma. Como se fosse um Photoshop de vídeo. O 3D, por exemplo, vem bem cru. O chroma-key (o fundo verde nas cenas onde depois haverá a inserção de personagens, cenários e efeitos digitais) é a gente que remove. Às vezes, também criamos alguns efeitos, como partículas de fumaça, chuva, neve. Precisamos entender de física e de fotografia, e nada é simplesmente técnico, o lado artístico é presente em cada detalhe. Por exemplo, como deixar a cena com um look mais sombrio ou mais alegre, como fazer com que o espectador olhe para determinado ponto, sentindo a intensidade e a intenção de cada take com cores, luminosidades, linhas de atenção, profundidade etc.
Como você ingressou nessa carreira?
Eu me formei em Publicidade em 2008, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Comecei trabalhando em propagandas locais e no mercado de casamento, o que foi me dando habilidade na edição. Dois dias depois de formada, uma amiga me chamou para trabalhar em uma agência de São Paulo, já lidando com after effects. Fiquei seis anos na publicidade e depois entrei na O2 Filmes (produtora que ganhou fama mundial por Cidade de Deus, filme de Fernando Meirelles indicado a quatro Oscar em 2004). Era compositora digital e cresci até o posto de VFX Supervisor, o principal posto criativo (entre os créditos de Liciani dessa época, estão as séries Felizes para Sempre?, de 2015, e Psi, de 2017).
E como chegou às superproduções de Hollywood?
O mercado brasileiro não tem sindicato para essa área. Eu trabalhava 15 horas por dia, sábado e domingo, corria o risco de burnout. Ou eu vou embora ou tenho um ataque. Eu tentei (sair) durante muitos anos. Tu te inscreve no site de cada empresa, bota o currículo, faz uma entrevista... Até poucos anos atrás, era muito difícil, mas acabei chamada por uma empresa de Londres para uma das melhores oportunidades: Vingadores: Guerra Infinita. Depois, por questão de estabilidade em relação ao visto de trabalho, me mudei para o Canadá.
Qual foi o seu papel em Duna, que conquistou o Oscar de efeitos visuais?
Eu gosto de ressaltar que não ganhei o Oscar, só faço parte da equipe que ganhou. Bem, hoje em dia, essas superproduções envolvem vários estúdios de efeitos visuais, cada um responsável por partes específicas do filme. No que eu trabalhava antes, em Montreal, éramos responsáveis pelas tempestades de areia no planeta Arrakis. Trabalhei oito meses em Duna, com algumas breves paradas. Mas meu trabalho mais longo foi em Fundação, mais de um ano.
Vai participar da continuação de Duna?
Não sei ainda, acho que não, mas é difícil de saber. Às vezes, podemos solicitar trabalhar em um filme específico se queremos muito, mas nunca é certo por questões de agenda entre um e outro, e também pela necessidade da empresa naquele momento.
Como foi seu trabalho em Sandman?
Não posso dar detalhes por questões contratuais, mas Sandman é meu primeiro trabalho como Lead Compositor fora do Brasil. O Lead é responsável por monitorar o time de compositores, criando os looks das cenas principais e as ferramentas para ajudar no processo de padronização dos efeitos, além de assegurar, juntamente com o Supervisor de Composição, que os efeitos sairão perfeitos, pixel por pixel, frame a frame. O visual de alguns personagens e de alguns cenários full CG (todo em computação gráfica) foi a nossa equipe que criou.
De que outros projetos futuros você pode falar?
Já estou há cinco meses trabalhando também como Lead Compositor em Adão Negro (filme da DC com Dwyane Johnson no papel do anti-herói).
Como você vê o mercado para o profissional de efeitos visuais?
A gente chegou em um nível que fez o público se tornar super crítico, vide as queixas sobre o CGI da séria da Mulher-Hulk. Antigamente, a gente relevava, por ser uma série, mas hoje não. Para nós, profissionais, é ótimo. O mercado está ridículo de bom. Se eu for demitida hoje, tô empregada amanhã. Todo mundo está fazendo filmes e séries que demandam uma grande quantidade de efeitos. No Brasil, a lei que obriga a ter produções nacionais também incrementou o setor. Para dar um exemplo, quando eu entrei na O2 éramos quatro pessoas na equipe; quando saí, éramos 25. E hoje está muito fácil ser chamado para trabalhar no Exterior. Aliás, com a pandemia, agora dá para trabalhar para o Exterior sem sair do Brasil.
E você pode falar de salário?
Um artista júnior pode conseguir de 50 mil a 80 mil dólares canadenses por ano (respectivamente, R$ 194 mil e R$ 310,4 mil). Um sênior, de 80 mil a 120 mil (R$ 465,6 mil). Se você for subindo de cargo, pode chegar a 150 mil dólares canadenses ao ano (R$ 582 mil).