Dois cinemas de Porto Alegre exibem um dos melhores filmes lançados no Brasil neste ano: O Sequestro do Papa (Rapito, 2023), com sessões no Espaço Bourbon Country e no GNC Moinhos.
Concorrente no Festival de Cannes de 2023, trata-se do mais recente longa-metragem de um cineasta longevo, o italiano Marco Bellocchio, 84 anos, autor de De Punhos Cerrados (1965), Diabo no Corpo (1986), Bom Dia, Noite (2003), Vincere (2009), O Traidor (2019) e o documentário Marx Pode Esperar (2021), sobre o suicídio de seu irmão gêmeo, em 1968.
A exemplo do que fez em Bom Dia, Noite, sobre o sequestro e o assassinato do político Aldo Moro pelo grupo terrorista Brigadas Vermelhas, em 1978; em Vincere, sobre a esposa secreta e escondida de Mussolini, Ida Dalser, e de seu filho bastardo; em A Bela que Dorme (2012), sobre a controvérsia surgida a partir da autorização judicial para a eutanásia obtida em 2009 pela família de Eluana Englaro, que passou 17 anos em estado vegetativo após um grave acidente carro; e em O Traidor, sobre o mafioso Tommaso Buscetta, delator da Cosa Nostra na década de 1980, Bellocchio revê um episódio histórico e polêmico da Itália.
Foi o caso Edgardo Mortara, que aconteceu em 1858, durante o período que ficou conhecido como Risorgimento, quando as forças revolucionárias lutavam para unificar a Itália, então um punhado de pequenos reinos. O próprio Papa, Pio IX (encarnado no filme por Paolo Pierobon, em atuação assombrosa), reinava feito um déspota em Bolonha, sede dos chamados Estados Papais.
Edgardo, vivido pelo promissor Enea Sala, é um menino judeu de seis anos que, logo no começo do filme, é retirado de sua casa pelas autoridades de Pio IX. Portanto, o título brasileiro escolhido pela distribuidora Pandora Filmes está errado, induz o espectador ao engano: o sequestro não é do Papa, mas a mando do pontífice da Igreja Católica.
A justificativa dada ao pai e à mãe (interpretados por Fausto Russo Alesi e Barbara Ronchi, ambos ótimos, ora na contenção, ora no desespero) é que Edgardo havia sido batizado como cristão. Não importa que isso tenha sido feito às escondidas, quando o filho ainda era bebê, por uma empregada doméstica que temia a morte dele: pela lei, nenhuma criança cristã pode ser criada em um lar com outra religião. Assim, o guri é arrancado do convívio com os pais e os muitos irmãos e levado para Roma, onde será abrigado na Casa dei Catecumeni, a escola para judeus mirins convertidos ao Cristianismo, dando início a uma batalha dos Mortara pela recuperação de sua guarda.
Ainda que O Sequestro do Papa reconstitua fatos amplamente documentados (como no livro Il Caso Mortara, de Daniele Scalise, base do roteiro escrito por Marco Bellocchio com Susanna Nicchiarelli), convém não avançar nos desdobramentos da trama. Com maestria, o octogenário diretor italiano equilibra o conflito religioso com o drama familiar. A faceta política de Bellocchio transparece no retrato da Igreja e de seus personagens ambiciosos e tirânicos. E são sempre atuais o tema da opressão de uma religião sobre outra e o debate sobre um Estado teocrático, que dá peso de lei a dogmas de fé.
No âmbito individual, surge a faceta psicanalítica do cineasta, dedicado a examinar o sofrimento, as dúvidas (o menino Edgardo não sabe se abraça o Cristianismo ou se deve ser fiel ao Judaísmo), os traumas e os medos de seus personagens _ aí incluído o próprio Pio IX, vide o pesadelo em que imagina ser circuncidado. A propósito: ao se permitir fundir a reencenação realista com sequências de caráter onírico, Bellocchio cria passagens belíssimas, como aquela em que, dentro de uma igreja, Jesus Cristo ganha vida ao ser libertado da cruz.
Nesse tipo de cena, Marco Bellocchio tem aliados fundamentais, como o diretor de fotografia Francesco Di Giacomo, os editores Stefano Mariotti e Francesca Calvelli e o compositor Fabio Massimo Capogrosso. Aliás, do design de produção à trilha sonora, todos os aspectos técnicos também embelezam o filme, emprestam gravidade à denúncia, nos transportam para dentro de seu tempo e de sua história. Como bem resumiu o crítico e professor Sérgio Alpendre na Folha de S.Paulo, O Sequestro do Papa "tem uma dramaticidade poucas vezes atingida no cinema atual, com a música imponente subindo no momento certo, o corte preciso, nem atrasado, nem adiantado, que respeita a sensibilidade do espectador. (...) Um corte pode nos levar de um estado de espírito a outro. Estamos à mercê de um grande demiurgo".