A Bela que Dorme (2012) demorou a estrear em Porto Alegre, mas a sensação é de que o filme que entra em cartaz nesta sexta-feira no GNC Moinhos e no Guion Center chega em boa hora. Sua trama labiríntica toca em vários temas de natureza política, escancarando vícios das relações de poder e a insustentabilidade da religião como bengala existencial, num chamado à razão (a acordar) como aquele que varre o Brasil neste ano.
Troque o Brasil pela Itália e você terá a grande metáfora por trás de Bela Adormecida (tradução literal para o título original). Na prática, a "bela que dorme" é Eluana Englaro, jovem vítima de um acidente de carro que passou 17 anos em estado vegetativo irreversível. O caso é real e dividiu o país europeu quando sua família conseguiu autorização judicial para a eutanásia, em 2009: a ciência condenou a garota, mas e quanto à possibilidade de um milagre? Vão libertar (ela e a família) ou será o equivalente a um assassinato?
No país de Berlusconi, como no de Marco Feliciano, setores conservadores se aproveitam de preceitos religiosos para fazer valer uma visão um tanto obscura das coisas. Acontece que a capacidade de observação de Marco Bellocchio, o melhor e mais político cineasta italiano da atualidade, rechaça o simplismo que separa bem e mal, certo e errado.
Entre as histórias fictícias que o veterano diretor de Vincere (2009) e Bom Dia, Noite (2003) concebeu em torno do caso Eluana, há um senador (Toni Servillo) em crise por ter de contrariar seus princípios para acompanhar a posição de seu partido no caso (o partido situacionista, do primeiro ministro, que tentou passar uma lei proibindo a eutanásia, mas não conseguiu), sua filha católica (Alba Rohrwacher) que se vê estranhamente atraída por um jovem favorável à eutanásia (Michele Riondino), uma junkie suicida (Maya Sansa) e o médico que tenta salvá-la da morte (Pier Giorgio Bellocchio, filho do diretor). A ponta mais chocante deste painel da vida no limite talvez seja a de uma mãe desesperada (Isabelle Huppert): sua personagem abandonou a carreira de atriz no auge do estrelato para cuidar da filha moribunda, que vive em situação semelhante à de Eluana.
A maestria de Bellocchio está em interligar tudo isso, dando aos vários núcleos da trama uma dose equivalente de razão e emoção, levando a plateia a se comover com os dramas dos envolvidos e a refletir sobre eles. É possível ver A Bela que Dorme como uma obra dialética, que não se presta a ser usada como bandeira de alguma linha política, e, ao mesmo tempo, como um filme-denúncia do estado de letargia de uma sociedade atravancada pelo medo de evoluir.
Essa imagem ambígua encontra uma representação na sutil relação que o cineasta propõe com o conto de fadas referenciado no título. O príncipe de Eluana pode não ter aparecido para evitar sua morte, mas se materializou na forma de um médico ante a garota que quer se matar e que, numa clara oposição à situação de Eluana, leva a vida com a mais absoluta intensidade.
Qual o tipo de salvação que queremos? Por que a buscamos, e o que está por trás dessa busca? Bellocchio parte de um episódio pontual para falar de questões transcendentais (literalmente), que despertam sentimentos opostos e, mais do que isso, se prestam a interesses diversos. Não impõe um ponto de vista diante das contradições que se estabelecem. Melhor do que isso, simplesmente joga luz sobre os fatos.
Não à toa, mesmo que o diretor tenha se negado a pronunciar-se a favor ou contra a eutanásia de Eluana, A Bela que Dorme foi rejeitado pelos católicos mais radicais: há ocasiões em que chamar o espectador à razão é suficiente.
A Bela que Dorme
(Bella Addormentata)
De Marco Bellocchio. Com Toni Servillo, Alba Rohrwacher, Isabelle Huppert, Michele Riondino, Maya Sansa e Pier Giorgio Bellocchio.
Drama, Itália/França, 2012. Duração: 115 minutos. Classificação: 12 anos.
Estreia nesta sexta-feira no GNC Moinhos e no Guion Center, em Porto Alegre.
Cotação: 5 estrelas.