De que forma se conta a vida de alguém que entregou feitos que mudaram a história e, por conta disso, ganhou um dos mais poderosos adjetivos que se pode ter: o de herói? E como é fácil ser fã de Ayrton Senna da Silva, um dos maiores ídolos que o Brasil já teve. Até mesmo quem não acompanhou ao vivo as corridas do piloto, por não ter idade ou sequer ser nascido nos anos 1980 e 1990, traz consigo de maneira intrínseca esse carinho pelo esportista, tricampeão mundial de Fórmula 1. A sua figura é onipresente ainda hoje.
Por isso, quando a Netflix anunciou que faria uma minissérie sobre o piloto que transformou as manhãs de domingo do país justamente no ano que marca três décadas de sua morte, houve uma comoção — e alguma desconfiança. Porém, para quem não se convenceu com as fotos ou com os trailers, basta chegar ao segundo episódio de Senna que toda a dúvida deve desaparecer. A série estreia em 29 de novembro na plataforma.
Neste capítulo em específico, o espectador é colocado quase dentro do cockpit de Ayrton Senna (Gabriel Leone) — que na época era piloto da Toleman — durante o GP de Mônaco, em 1984. Ali, o brasileiro demonstra, pela primeira vez, toda a sua habilidade ao volante, dirigindo com maestria — "na ponta dos dedos" — sob chuva. Naquele momento, a lenda começou a ser construída e é muito difícil segurar a emoção a partir deste ponto.
A minissérie Senna conta com seis episódios, que giram em torno de uma hora cada e são conduzidos pelo diretor-geral e showrunner Vicente Amorim, cineasta austro-brasileiro responsável pelos filmes O Caminho das Nuvens (2003) e Corações Sujos (2011). Em cada um dos capítulos da produção, trechos da história de Senna são apresentados — e aprofundados, reimaginando, para o público, cenas que mostram o homem por trás da lenda.
— A gente não fez um documentário. Então, é claro, vão ter adaptações, escolhas que estão postas ali, em todas as áreas, não só na minha interpretação, na minha composição do Ayrton, mas no roteiro, na história, em outros personagens. Escolhas que são feitas para que aquilo funcione bem enquanto série, enquanto o produto que é: uma dramaturgia — disse Leone, em entrevista a Zero Hora.
Assim, a série ficcionaliza momentos da trajetória de Senna, como eram os bastidores das disputas, a relação do piloto com os colegas e sua obsessão por ser o melhor, mas também a sua vida íntima, as trocas com a família e com os seus amores. O ponto forte da produção, porém, são as corridas, que têm um espaço considerável de tela — a série, afinal, é classificada pelo próprio Leone como sendo de ação.
Neste quesito, não fica devendo em nada para as produções hollywoodianas, como as elogiadas Rush — No Limite da Emoção (2013) e Ford vs. Ferrari (2019), que entregaram sequências de corrida impressionantes. Não houve economia na hora de recriar as disputas de Senna, principalmente as em que o piloto voava baixo nas pistas em dias chuvosos. Alguns dos takes são dignos de enquadrar e colocar na parede.
Alinhada com uma mixagem de som competente e imersiva, a montagem das corridas é bem executada e dinâmica, dando a sensação da velocidade que o esporte requer. A câmera é colocada em vários pontos inventivos da pista para dar uma experiência diferenciada na disputa e também mostrando como o carro exigia de Senna — principalmente, na prova do Brasil, em 1991, com o piloto vencendo apenas com a sexta marcha nas últimas sete voltas. É uma demonstração de garra que inspirou e vai inspirar gerações.
Sem imitação
Para além das pistas, a vida de Senna foi pop — ainda é, na verdade — e por conta disso, a sua trajetória está repleta de figuras conhecidas nacionalmente e mundialmente. O piloto foi amigo de Galvão Bueno (Gabriel Louchard), namorou com Xuxa (a gaúcha Pâmela Tomé) e foi rival nas pistas de Alain Prost (Matt Mella), todos retratados na minissérie. Em comum, são personagens com características marcantes e passíveis de imitações que poderiam facilmente descambar para o caricato, o que é evitado pela produção.
Leone, que foi alvo de comparações tanto positivas quanto negativas ao ser anunciado como Senna, disse não dar atenção para as críticas, focando no trabalho. Desta forma, em seu processo para viver o esportista, o ator conta que "se apagou" para ser apenas um canalizador da história do piloto, minimizando a questão da aparência física — apesar de, em diversos momentos, a semelhança ser impressionante:
— Foi processo muito sutil de encontrar esse Senna fisicamente em mim. E, por outro lado também, acho que até mais importante do que isso, é a parte interna dele, a essência do Ayrton. Não ia adiantar nada eu estar muito parecido com ele e as pessoas não se conectarem com a história dele.
O que importa é vencer
Se a minissérie tem diversas virtudes, há algumas derrapadas. Kaya Scodelario, que vive a repórter fictícia Laura, é um dos pontos baixos da produção. A atriz, que tem um grande tempo de tela, torna-se um enxerto desnecessário na história para representar a imprensa, mas que não funciona, com falas que tentam ser sagazes, misturando admiração e veneno, mas que se tornam apenas chatas.
É claro que isso passa principalmente pelo roteiro. Escrito a 10 mãos, mas liderado por Gustavo Bragança, o script poderia ter mais sutileza para contar a história de Senna. Sim, o tempo é curto — cerca de seis horas —, mas vários diálogos soam artificiais, expositivos, realizados apenas para ligar um arco com outro. É uma curva malfeita que a minissérie faz.
Entretanto, assim como a carreira de Senna, com altos e baixos, o que importa é vencer. E isso acontece. A megaprodução é uma bela homenagem a um dos maiores que o esporte brasileiro — e mundial — já viu e verá. Por sorte, toda uma geração poderá se emocionar com a sua valentia, agora também na ficção. Este é mais um capítulo da história de alguém que é eterno.