É incrível que um personagem fascinante como William Seabrook (1884-1945) ainda não tenha se tornado tema de uma cinebiografia. Não faltam aventuras, controvérsias, exotismo, sexo, glamour e decadência na trajetória desse jornalista e escritor estadunidense. Aliás, talvez o excesso de episódios marcantes seja um impeditivo — como fazer caber todas as suas viagens, todas as suas idiossincrasias, todas as suas taras e toda a sua bebedeira em duas horas de filme?
Não à toa, o canadense Joe Ollmann levou 10 anos entre a pesquisa e a produção da história em quadrinhos O Abominável Sr. Seabrook (The Abominable Mr. Seabrook, 2017). Com tradução de Érico Assis, a obra foi lançada recentemente no Brasil pela Quadrinhos na Cia. (320 páginas, R$ 129,90).
"Por que alguém ia perder tanto tempo com um canibal, sádico, alcoólatra e suicida?", pergunta-se o autor na introdução, para logo em seguida responder: "Oras. Seabrook é um cara interessante que teve uma vida interessante. Sempre afirmei que acho Seabrook interessante não por causa das aberrações, mas porque ele resolveu falar delas".
Seabrook, diz Ollmann, seguia o lema do dramaturgo e poeta romano Terêncio (185 a.C.-159 a.C.): "Sou humano, nada do que é humano me é estranho". Tinha imensa curiosidade por conhecer e experimentar, por buscar o estranho e o sobrenatural. Relatou quase tudo o que viveu em reportagens para jornais e revistas e em uma dezena de livros que foram best-sellers em sua época, mas depois foram sumindo de circulação e da memória — certamente pela fama de depravado que cultivava abertamente, por escolhas equivocadas, como a concessão ao marketing sensacionalista, e pela consequência nefasta do alcoolismo no seu trabalho e na sua vida.
Autor de Pai de Mentira, publicado no Brasil em 2022 pela Comix Zone, Joe Ollmann abre sua HQ imaginando uma das últimas noites do protagonista na Nova York de 1945: "William Seabrook está bêbado de novo... Não de novo. Ainda bêbado. Sempre bêbado". Já se sentia esquecido e menosprezado. Daí que, em um bar, diante de um sujeito já etilicamente adormecido, tece um longo monólogo no qual faz vislumbrar o que o quadrinista vai desenvolver ao longo das páginas seguintes. Como a jornada ao Haiti, que culminou no livro A Ilha da Magia (1929), considerado um tratado histórico, antropológico e cultural que não exercia um olhar de superioridade branca nem desrespeitava o objeto de estudo — no caso, o culto vodu. "Eu de fato tentei contar ao Sr. e Sra. Classe Média Americana, cristãos carrancudos, sobre a beleza do vodu, que é uma religião, meu amigo! Assim como o metodismo!", vocifera Seabrook.
O interesse genuíno de difundir culturas não anulava um tino comercial. Seabrook chegou a ser um dos autores mais bem pagos de sua época porque sabia como enfeitiçar o público. Foi ele que, através de A Ilha da Magia, popularizou no Ocidente o termo zumbi. Em outro de seus best-sellers, Aventuras na Arábia (1927), descreveu a vida de beduíno após passar quase dois anos entre Líbano, Iraque, Síria e Jordânia. No capítulo de O Abominável Sr. Seabrook sobre essa passagem, percebe-se como Ollmann foi minucioso na consulta às fontes. Ao ilustrar as ghrazzu, incursões planejadas para roubar camelos de outras tribos, o quadrinista compara a narrativa de Seabrook em Aventuras na Arábia com as reminiscências da autobiografia Sem Poder se Esconder (1942): "O escritor jovem e apto estava mais disposto a delinear sua fraqueza, enquanto o Seabrook velho, fracassado tanto no corpo quanto na carreira, precisava dar lustro a sua performance".
Seabrook gabava-se da sua franqueza, mas também imprimiu mentiras. Orgulhava-se de não deturpar a imagem dos povos nativos com os quais convivia, mas também assumiu a posição do grande caçador branco. Cometeu as duas traições a si mesmo em Caminhos na Selva (1930), sucesso literário resultante de sua viagem pela África. Obcecado em participar de um banquete canibal, fingiu ter sido em um ambiente rústico da Costa do Marfim que comeu a carne humana preparada para ele em uma cozinha bem equipada de Paris.
Mas ele nunca enganou ninguém sobre "as moçoilas nuas acorrentadas", como menciona no monólogo da introdução. Sabiam do seu fetiche tanto suas esposas quanto seus amigos ilustres, como o escritor Aldous Huxley (1894-1963), autor de Admirável Mundo Novo, e o pintor, fotógrafo e cineasta Man Ray (1890-1976). Este último, na autobiografia Autorretrato, escreveu sobre o sadismo sexual do protagonista, "sendo mais revelador do que tudo o que Marjorie (a segunda esposa) e o próprio Seabrook escreveram", afirma Ollmann. "Ele ilumina o lado mais sujo, o que fica oculto no papo do 'Oh, puxa, é que eu gosto de amarrar as moças'. Man Ray opinou que a origem do desejo de castigar mulheres era uma maneira de compensar Myra, a mãe dominadora." Ao aproximar-se do artista, que chegou a produzir sessões de fotos em que a célebre fotojornalista Lee Miller (1907-1977) serviu de modelo, usando uma coleira, Seabrook buscava legitimar seu sadomasoquismo, que se tornou um vício tão dominante quanto o alcoolismo. Ambos o auxiliavam a empreender o que mais fazia na vida, seu único comportamento constante: fugir.
A dedicação ao bondage, por sua vez, talvez ajude a explicar porque William Seabrook ainda não virou personagem cinematográfico. Um estúdio com orçamento para reconstituir as aventuras no Haiti, no Oriente Médio e na África provavelmente cortaria do enredo as obsessões sexuais. Como brinca o tradutor gaúcho Érico Assis, "taí o problema: ou tu faz um filme do Indiana Jones ou do Cinquenta Tons de Cinza. Os dois não dá".
Ao final de O Abominável Sr. Seabrook, o quadrinista canadense diz que o grande legado de seu personagem "talvez tenha sido deixar as confissões de sua alma em conflito à vista de todos. Seabrook foi um homem perturbado, complicado, que resolveu brigar com todos os seus demônios em público". Pelas mãos de Joe Ollmann, esses demônios ganham corpo, e somos conduzidos ao céu e ao inferno de um homem que só não conseguiu escapar da garrafa.
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