Não é à toa que se chama Cinema Inflamável a produtora do diretor cearense Karim Aïnouz. Seu novo filme, Motel Destino (2024), deve botar fogo nas salas de cinema onde estreia nesta quinta-feira — em Porto Alegre, pode ser visto no CineBancários, no Cineflix Total, no Espaço Bourbon Country, no GNC Praia de Belas e na Sala Eduardo Hirtz. Tem sexo quase o tempo todo, seja em cena, em alguma TV do cenário ou no som ambiente.
Foi o único concorrente latino-americano à Palma de Ouro no Festival de Cannes, em maio, quando mereceu 12 minutos de aplauso. Aïnouz é habituê dos principais festivais da Europa. Esteve outras quatro vezes em Cannes (com Madame Satã, O Abismo Prateado, A Vida Invisível, ganhador do prêmio Um Certo Olhar, e Firebrand), duas em Veneza (O Céu de Suely e Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, em parceria com Marcelo Gomes) e uma em Berlim (Aeroporto Central).
A obra de Aïnouz, 58 anos, dialoga com a do italiano Luca Guadagnino, 53. Para ambos os cineastas, o sexo é vital — ou um instrumento de poder; o corpo de seus personagens, uma paisagem a ser explorada; o desejo, um doce carrasco. Por coincidência, nesta temporada os dois lançaram filmes sobre triângulos eróticos em que dois homens se envolvem com a mesma mulher, mas pelo menos um deles também sente atração pelo outro. Guadagnino fez Rivais, ambientado no mundo do tênis, e Aïnouz colocou o jovem Heraldo (papel de Iago Xavier) para sacudir o cotidiano do motel de beira da estrada administrado pelo casal Elias (Fábio Assunção) e Dayana (Nataly Rocha) no litoral do Ceará.
Rodadas em Beberibe, as primeiríssimas cenas retratam as célebres falésias locais, permanentemente sob a ação erosiva do mar. É como se fosse uma tradução visual do quão transformador e marcante o desejo sexual pode ser. "Tem gente que não sai da nossa mente. Fica ali, gravado", dirá mais tarde uma coadjuvante.
Nesse cenário praiano, conhecemos o protagonista, Heraldo, que está pensando em largar a vida bandida e se mudar para São Paulo. Antes, porém, ele precisa quitar a dívida com uma chefona do tráfico de drogas. Ela lhe dá uma missão, mas Heraldo, por causa de sexo, acaba errando feio e vira alvo da tal de Bambina. Sua saída é se esconder no Motel Destino, onde passa a trabalhar para Elias ao mesmo tempo em que se engraça com Dayana.
O enredo e o próprio nome do estabelecimento aludem a uma das inspirações de Karim Aïnouz, um filme símbolo tanto do cinema noir da década de 1940 quanto dos thrillers eróticos dos anos 1980: O Destino Bate à sua Porta, título dado no Brasil para The Postman Always Rings Twice, novela de James M. Cain adaptada por Tay Garnett em 1946 e por Bob Rafelson em 1981. Aliás, o fatalismo associado à palavra que batiza o motel fez com que fosse empregada em várias versões nacionais das obras noir: Curva do Destino (1945), O Destino se Repete (1947), Na Teia do Destino (1949). E repare na semelhança da trama: na história ambientada à época da Grande Depressão dos EUA, um errante vai parar em um restaurante na beira da estrada, onde consegue um emprego e engata um caso com a fogosa e maltratada esposa do dono.
Em Motel Destino, Aïnouz trocou o preto e branco do cinema noir pela direção de fotografia em tons de azul e vermelho da francesa Hélène Louvart, a mesma de A Vida Invisível. E, não bastasse o calor nordestino, não bastasse o despudor nas cenas de sexo, não bastasse a onipresença dos gemidos, dos rangidos de cama e dos urros de gozo no som ambiente, o diretor brasileiro esquentou ainda mais as coisas: tornou o forasteiro um objeto do desejo também do marido traído — ainda que nunca assumido com todas as letras. "A gente veio te convidar para fazer uma baguncinha", é o que Elias diz para chamar Heraldo a um churrasco na piscina.
Os diálogos escritos por Wislan Esmeraldo com a colaboração do próprio Aïnouz e de Maurício Zacharias não são sempre explícitos, mas o corpo fala. O olhar grita. O elenco manda bem: Iago Xavier equilibra a inocência, a impulsividade e a incerteza da juventude de seu personagem. Nataly Rocha vai do desencanto ao tesão, da submissão à revolta. Fábio Assunção junta sua maior experiência com o privilégio de encarnar um tipo muito ambíguo: Elias é uma figura ora ameaçadora, ora patética, ora decadente, ora vigorosa. Em uma cena, as expressões do rosto do ator são um espetáculo à parte, espelhando sentimentos conflitantes.
Vale mencionar o elenco não humano. A presença de jumentos, gatos, bodes, cobras e cavalos funciona como lembrete da nossa animalidade e da nossa subordinação aos instintos.
Primeiro filme de uma trilogia
Em entrevista ao jornal O Globo, Karim Aïnouz revelou que este é o primeiro filme de uma trilogia a ser realizada. Trevo de Quatro Navalhas, segundo o diretor, será uma faroeste nordestino ambientado no posto de gasolina que aparece em Motel Destino. Na história, uma gangue de travestis comete crimes para financiar cirurgias de adequação sexual.
Já Lana Jaguaribe abordará o universo dos matadores de aluguel e mostrará uma pistoleira que parte em busca de vingança contra homens responsáveis por um trauma causado nela e em sua irmã.
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