Cenas de sexo são um ponto em comum entre os títulos exibidos na programação noturna do 52º Festival de Cinema de Gramado. Aparecem, com destaque, em quatro dos sete filmes nacionais já apresentados e no episódio de estreia de uma série brasileira.
Na sexta-feira (9), dia da abertura, tivemos a sessão hors-concours de Motel Destino, filme do diretor cearense Karim Aïnouz que, como o título deixa entrever, se passa praticamente todo em um cenário dedicado ao ato sexual.
No sábado (10), o primeiro concorrente aos Kikitos da mostra de longas-metragens nacionais, O Clube das Mulheres de Negócios, da cineasta paulista Anna Muylaert, virou notícia por causa da orgia estrelada pela octogenária atriz gaúcha Ítala Nandi e por vários rapazes.
Na mesma noite, o capítulo inicial do seriado Cidade de Deus: A Luta Não Para, dirigido pelo baiano Aly Muritiba, trouxe uma tórrida transa dos personagens interpretados por Thiago Martins e Andreia Horta — ele faz o papel de Bradock, que, ao sair da prisão, quer retomar seu posto no crime organizado, e ela encarna Jerusa, sua advogada e namorada.
No domingo (11), outro longa da competição, Estômago 2: O Poderoso Chef, do paranaense Marcos Jorge, contou com transas na Itália, a cargo do personagem vivido por Nicola Siri, e no Brasil, onde os diálogos de duplo sentido do agora coadjuvante Nonato (João Miguel) conferem um molho cômico à cena.
O Festival de Gramado tirou um descanso na segunda (12) e na terça (13). Na noite desta quarta-feira (14), ofertou um momento antológico do cinema, na sessão de Cidade; Campo.
O filme da diretora paulista Juliana Rojas abriu a programação, que foi completada pela entrega do Troféu Cidade de Gramado para a atriz catarinense Vera Fischer e pela exibição do penúltimo longa na disputa pelos Kikitos (o derradeiro será Barba Ensopada de Sangue, nesta quinta, dia 15): Filhos do Mangue, rodado no Rio Grande do Norte pela também paulista Eliane Caffé. A apresentação desse título pode ter batido um recorde no Palácio dos Festivais: subiram ao palco 31 pessoas (o que se refletiu em um considerável atraso no protocolo), incluindo vários moradores de uma comunidade pesqueira que atuam no filme. É o caso de Ilaneide Campos, que fez o discurso mais potente:
— Cinema é inclusão. Eu digo isso porque sou autista nível 1, ex-moradora de rua e vítima de violência sexual quando eu tinha cinco anos. Aos 16, minha mãe foi pro hospital e meu pai vendeu a casa, com todos os móveis, e foi embora com a vizinha. Quando casei, sofri violência física, psicológica e moral. Basta de violência contra as mulheres. Deixem-nos viver.
Ganhador do troféu de direção na mostra Encounters (para cineastas independentes) do Festival de Berlim, Cidade; Campo é o quarto longa de Juliana Rojas, que venceu o prêmio da crítica no Festival de Gramado de 2014 com Sinfonia da Necrópole e competiu na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes de 2011 com Trabalhar Cansa, coassinado por Marco Dutra. A estreia no circuito comercial está prevista para o dia 29 de agosto. Ao falar sobre o filme, a diretora pediu que o espectador "se sentisse entrando em um barco num rio, se deixando ser conduzido".
Como o uso do ponto e vírgula no título sugere, o filme conta duas histórias. Na primeira parte, mais curta e mais bem resolvida, Fernanda Vianna interpreta Joana, uma trabalhadora rural que, após o trágico rompimento de uma barragem, vai morar com a irmã na cidade de São Paulo. Ao mesmo tempo em que arranja emprego num aplicativo de faxinas, ela tenta encontrar elementos que a reconectem com o telúrico — uma urgência existencial, a julgar pelos sonhos recorrentes com um cavalo branco que galopa em um campo verde.
Na segunda parte, mais longa — muito por causa do ritmo adotado, que exige paciência — e mais mística, dá-se o inverso: Flávia (Mirella Façanha), uma supervisora de TI, e Mara (Bruna Linzmeyer), que trabalhava na indústria de rações para animais, formam um casal que sai do urbano (eram as donas de um apartamento limpo por Joana) e vai para a fazenda que a primeira herdou do falecido pai. A natureza, a vida animal e o céu estrelado ora convidam à paz de espírito, ora as obrigam a lidar com lembranças ruins, a morte e fantasmas. O pé na terra, como diz uma coadjuvante, provoca a "procurar a sua história, aprender a sua canção".
Antes de a tempestade cair, contudo, há um temporal de amor — literalmente: esse é o título da canção de Leandro & Leonardo que embala a dança da sedução de Mara para Flávia, em certa noite.
Quando as duas vão de fato para a cama, Juliana Rojas corta a música, para evitar qualquer tipo de humor involuntário, decorrente do emprego de um clássico brega. Com sensibilidade, a cena celebra não só a diversidade sexual, não só a diversidade racial (Flávia é negra, Mara é branca), mas também a diversidade de corpos. Sensualmente, as mãos e os pés da personagem de Bruna Linzmeyer passeiam pelo corpo obeso da parceira encarnada por Mirella Façanha, demorando-se em suas dobras. Sob o olhar de uma equipe feminina (além de Rojas, há as diretoras de fotografia Cris Lyra e Alice Andrade Drummond, a montadora Cristina Amaral, as diretoras de arte Juliana Lobo e Daniella Aldrovand, a compositora Rita Zart), que equilibra delicadeza e quentura, Flávia e Mara ilustram a comunhão carnal como raras vezes se viu no cinema brasileiro.
Na entrevista coletiva concedida na manhã desta quinta-feira, Juliana Rojas e as duas atrizes falaram sobre a cena.
— É sobre a possibilidade do afeto em um mundo que a gente está tentando sobreviver, em um cenário tão duro. É como ter algo de esperança — afirmou Rojas.
— Apesar do luto, das travessias, das dores, das faltas, dos fantasmas emocionais e reais, o que sustenta é o afeto. Inclusive, eu, como atriz, me sustentei nos afetos. Conseguimos construir um afeto em que o corpo de uma se aconchega no outro com muito afeto. O corpo é casa, o corpo da outra é casa — contou Bruna Linzmeyer.
— Fico muito emocionada com a mudança de perspectiva sobre algo. É a construção do imaginário de humanização em pessoas como eu. É mais fácil encontrar afeto no que achamos humanos, e isso mora nos padrões — comentou Mirella Façanha.