O filme mais polêmico entre os que estrearam nos cinemas brasileiros neste ano já pode ser visto em casa: Pobres Criaturas (Poor Things, 2023) estreia nesta quarta-feira (20) na plataforma Star+. Dirigida por Yorgos Lanthimos, esta mistura de Frankenstein, socialismo e muito sexo (a classificação indicativa é 18 anos, convém lembrar) chega ao streaming embalada pelas quatro conquistas no Oscar, 10 dias atrás: melhor atriz — foi a segunda estatueta de Emma Stone, antes vencedora por La La Land (2016) —, design de produção (James Price, Shona Heath e Zsuzsa Mihalek), figurinos (Holly Waddington) e maquiagem e cabelos (Nadia Stacey, Mark Coulier e Josh Weston). Na premiação da Academia de Hollywood, o título concorria em outras sete categorias: a principal, a de direção, ator coadjuvante (Mark Ruffalo), roteiro adaptado (Tony McNamara), fotografia (Robbie Ryan), edição (Yorgos Mavropsaridis) e música original (Jerskin Fendrix).
Grego de 50 anos, Lanthimos já havia sido indicado três vezes ao Oscar — primeiro como roteirista de O Lagosta (2015), depois como diretor e produtor de A Favorita (2018). E um de seus primeiros longas, Dente Canino (2009), concorreu ao prêmio internacional. No Festival de Cannes, ele ganhou a mostra Um Certo Olhar por Dente Canino e foi laureado pelo roteiro de O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017). Em Veneza, levou o Leão de Ouro por Pobres Criaturas, a Osella de Ouro pelo script de Alpes (2011) e um troféu especial do júri por A Favorita.
Pobres Criaturas mescla características dos seus títulos anteriores. Temos uma distopia — ambientada numa Era Vitoriana (1837-1901) no estilo steampunk, em que dirigíveis cobrem os céus e cientistas fundem porcos com galinhas. Temos a combinação do absurdo com o chocante, do pessimismo com um senso de humor. Temos a crítica social e a ridicularização das figuras de poder — no caso, o patriarcado. Temos personagens movidos por seus impulsos sexuais (e temos o despudor nas — incontáveis — cenas de sexo) e por um desejo de ver como é a vida lá fora. Temos o uso de lente olho de peixe, tão angular que deixa as imagens esféricas e distorcidas, aumentando tanto o clima de estranheza quanto a profundidade de campo — o que faz sentido em uma história sobre uma protagonista que está descobrindo o mundo. E temos a fabulosa Emma Stone, que, por A Favorita, disputou o Oscar de coadjuvante.
Baseado em romance do britânico Alasdair Gray publicado em 1992 (e ainda inédito no Brasil), Pobres Criaturas é uma releitura de Frankenstein (1818), o livro de Mary Shelley que se tornou um clássico da ficção científica e do horror ao abordar os limites éticos dos avanços da ciência. Há também um quê de Cândido (1759), a debochada obra de Voltaire sobre um jovem ingênuo e otimista que passa a testemunhar e vivenciar as dificuldades do mundo.
A primeira parte do filme se passa em Londres e é em preto e branco. Em mais uma ótima atuação, Willem Dafoe interpreta um excêntrico cientista chamado Godwin Baxter (o prenome do personagem vem do sobrenome do pai de Mary Shelley). Vítima de sádicos experimentos paternos — vide o rosto retalhado, os problemas digestivos, a impotência —, virou um cirurgião que faz jus ao apelido God (Deus, em inglês) ao devolver à vida uma jovem suicida, a quem rebatiza como Bella Baxter.
Encarnada com talento e destemor por Emma Stone, ela personifica uma (muito abjeta) fantasia sexual masculina: tem o corpo de uma mulher e o cérebro de uma criança. Daí que a flagramos quebrando pratos, fazendo xixi no meio da sala, balbuciando palavras.
— Que retardada bonita! — exclama o estudante de Medicina Max McCandles (papel do humorista Ramy Youssef), que se torna assistente de Godwin e acaba encorajado a se casar com Bella.
Ela aceita o pedido de noivado, mas então surge em cena o advogado cafajeste e hedonista Duncan Weddeburn (Mark Ruffalo, deliciosa e lascivamente engraçado). Duncan aparece no momento em que Bella, com a mente já mais desenvolvida, está explorando sua sexualidade — a mudança do preto e branco para o colorido assinala o seu desabrochar. A protagonista fica fascinada pelos "saltos furiosos" (o orgasmo) das transas com Duncan, então, topa fugir com ele em uma viagem de navio que inclui paradas em Lisboa, Alexandria (no Egito) e Paris.
Nessa jornada, Bella conhecerá personagens interpretados pela octogenária Hanna Schygulla, pelo comediante Jerrod Carmichael e pela camaleônica Kathryn Hunter (que fez as três bruxas em A Tragédia de Macbeth). Com cada um deles, aprenderá mais sobre si mesma e sobre o mundo. Fica particularmente abalada ao deparar com a miséria, o que vai despertar ideais socialistas.
A todo tempo, Duncan representa os homens que querem controlar as mulheres. Ora repreende Bella por sua libido (vai contra "a polidez da sociedade"), ora se desespera quando ela passa a ter consciência moral e social. É uma figura patética e covarde, que jamais pede nossa empatia, só nosso riso ou nosso desprezo.
O sexo é constante na trajetória de Bella, seja por vontade própria, seja como meio de subsistência. O modo como Pobres Criaturas retrata as experiências sexuais da protagonista e sua incursão pela prostituição suscita reações contraditórias. "É uma obra-prima feminista ou uma ofensiva fantasia sexual masculina?", perguntou o jornal britânico The Guardian em uma publicação que congrega as opiniões de 14 jornalistas e críticos.
Para a colunista Zoe Williams, o filme "pede que você imagine uma sexualidade feminina que não tenha sido dolorosamente formada pela sociedade e seu arsenal de regras explícitas, expectativas tácitas, violência aberta e controle dissimulado da vergonha".
Redatora do Guardian, Imogen Tilden lembra que, sim, este é um filme feito por homens e com uma heroína literalmente criada por um homem, e "o corpo maduro e a mente infantil de Bella são o próprio modelo da fantasia masculina, assim como seu prazer e apetite por sexo". Mas, por outro lado, os personagens masculinos jamais conseguem controlar a protagonista, e "para Bella a masturbação não traz o peso da culpa e da auto-aversão inerentes a uma cultura que ensina às meninas que seus corpos ou prazer sexual são vergonhosos. Bella gosta de sexo. (...) Por que ela não pode usar seu corpo como deseja?". Tilden acrescenta que, à medida que Bella atinge a maturidade mental, é a sua mente, não o seu corpo, que ela quer usar.
Já Samira Ahmed, apresentadora do programa Front Row na BBC Radio 4 e curadora do Centre for Women's Justice, critica a romantização da prostituição, aponta o desejo insaciável de Bella como um dos mais antigos mitos sobre abusadores e define Pobres Criaturas como "a fantasia de um homem heterossexual de meia-idade sobre a ninfomania, com a mais frágil cobertura de sátira".
Com ironia, a jornalista Bidisha Mamata faz coro: "As 'aventuras' de Bella são 98% de sexo heterossexual com penetração e 2% de conversa. Fiquei particularmente grata por sua incursão na vida de bordel, porque os homens que escrevem histórias não conseguem imaginar nenhum trabalho para as mulheres, exceto a prostituição, e então eles falam sobre como tudo é tão filosoficamente interessante, e acrescentam insulto à injúria, colocando esses pensamentos masturbatórios e autojustificáveis na boca de mulheres fictícias. Mas o que eu saberia? Assim como Bella no início do filme, eu sou apenas uma idiota estúpida, e não tenho a combinação única de carnalidade intensa e beleza virginal de Bella para compensar".
A própria representação gráfica do sexo provoca celeuma. Nas suas redes sociais, o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, diretor de Bacurau (2019, com Juliano Dornelles) e Retratos Fantasmas (2023), criticou a imprensa brasileira por associar Pobres Criaturas a "sexo explícito" — termo empregado em muitas manchetes —, quando, na verdade, o filme tem sexo simulado. "Acho que houve no Brasil uma americanização e puritanização", escreveu Mendonça Filho. "'Sexo explícito' no período de reabertura saindo da ditadura eram os filmes que tinham imagens de sexo real. Com a chegada dos multiplex de grupos estrangeiros e americanos nos anos 90, gradualmente a 'censura 18 anos' que sempre foi vista com naturalidade no Brasil passou a ser combatida, adquirindo um certo estigma para o filme. E de anos para cá percebi o uso cada vez maior do termo 'sexo explícito' não mais como sempre foi usado no Brasil (sexo real filmado), mas como é usado nos EUA (sexo simulado softcore)."
Emma Stone, que também é produtora de Pobres Criaturas, lembrou que, por isso, ela tinha voz para falar sobre o retrato feminino no filme e queixou-se do interesse praticamente exclusivo da imprensa pelas cenas de nudez e sexo. Que, para a atriz, são honestas para com a personagem, como ela contou em entrevista à Rádio 4, da BBC: "A ideia é ser fiel à experiência de Bella. Isso representa grande parte da experiência e do crescimento dela, como me parece acontecer para a maioria das pessoas na vida. Mas eu vejo o sexo apenas com um entre muitos aspectos da vida dela. Há também as descobertas sobre comida, filosofia, viagens e dança. Bella é completamente livre e sem vergonha do corpo. Ela não sabe ficar envergonhada, não tenta encobrir as coisas e mergulha na experiência completa em todos os aspectos. Então, o filme não poderia fugir disso ou cortar esse aspecto da vida dela porque a nossa sociedade funciona de uma maneira específica... Isso pareceria uma falta de honestidade sobre quem é Bella".
Autora da coluna X de Sexo na Folha de S.Paulo, Bruna Maia afirmou que "o pessoal se impressiona com tão pouco!". Para ela, "as cenas com Ruffalo são lúdicas, mostram o sexo, até aquele momento, como uma brincadeira para a personagem. Isso é perfeitamente coerente com aquilo que ela é na prática, uma adolescente infantilizada em corpo adulto. Elas não são desnecessárias e estão de acordo com o objetivo do filme, que é narrar a história de uma mulher abusada de várias formas possíveis". Depois, quando Bella ingressa em uma casa de prostituição, "as cenas foram criadas para mostrar o descaso com o prazer feminino da maioria dos homens que frequentavam o lugar, e cumprem bem esse propósito", disse Bruna Maia, acrescentando: "Não, ser prostituta naquele contexto não foi uma escolha livre e ousada de Bella, não há nenhuma emancipação naquilo. Mas a maioria dos trabalhos também não são fruto de uma escolha ou emancipação".
O que talvez seja espantoso é que, segundo a crítica Bruna Haas, da Vigília Nerd, muitas reclamações sobre o sexo em Pobres Criaturas partiram de um público jovem, na faixa dos 18 aos 24 anos. Ela me mostrou posts de dois usuários do X, o antigo Twitter. Um disse "odiar" ver cenas de sexo, o outro escreveu: "Fui assistir Pobres Criaturas ontem no cinema e fiquei traumatizado, nunca pensei que ia ver a Emma Stone de tantas formas possíveis. De 2h20min de filme, no mínimo 1h é apenas cenas de sexo explícito". Para Bruna Haas, no entanto, o pudor e a rejeição não surpreendem: "Estão em consonância com um tipo de série tão em alta entre os jovens, os doramas, que quase não têm sequer sugestão de sexo".