Está em cartaz em dois cinemas de Porto Alegre — o Espaço Bourbon Country, com sessão às 20h30min, e a Sala Paulo Amorim, às 18h30min — um filme turco que virou sensação entre colegas de crítica. É Ervas Secas (Kuru Otlar Üstüne, 2023), do diretor Nuri Bilge Ceylan, que tem três horas e 17 minutos de duração e valeu a Merve Dizdar o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes.
Aos 65 anos, Ceylan é um dos mais prestigiados cineastas contemporâneos. Em Cannes, recebeu o Grande Prêmio do Júri por Distante (2003) e por Era Uma Vez na Anatólia (2011), o troféu de direção por 3 Macacos (2008) e a Palma de Ouro por Sono de Inverno (2014). Ervas Secas, que ele, além de dirigir, também assina como produtor, um dos três roteiristas e um dos dois editores, foi o seu quinto filme selecionado pela Turquia para o Oscar internacional — nenhum chegou a ser indicado pela Academia de Hollywood.
Ervas Secas é outro destaque da temporada 2023 que tem uma escola como cenário de conflito, depois do japonês Monster e do alemão A Sala dos Professores. A história se passa em um vilarejo remoto onde, conforme relata o protagonista, só há duas estações: inverno e verão. A neve predomina na maior parte do filme, tanto funcionando como um símbolo de isolamento e opressão quanto sugerindo que há fatos e sentimentos ocultos.
O personagem principal é um professor de arte trintão, Samet, papel de Deniz Celiloglu, coadjuvante no popular Milagre na Cela 7 (2019). Ele está cumprindo seu quarto ano de serviço obrigatório no lugar e não vê a hora de ter atendida sua solicitação de transferência para Istambul. Quer deixar logo para trás seus alunos, crianças que estão "condenadas a plantar batatas e beterrabas", como diz o docente em um rompante em plena sala de aula.
Samet, essa cena deixa claro, não é o professor idealista e inspirador típico de dramas ambientados em escolas. Ainda que o tratamento dispensado a ele por estudantes e moradores da comunidade indiquem que seja um sujeito amável, logo veremos colocar em prática seu egoísmo (assumido), sua inveja (não tão declarada) e um certo prazer sádico na aplicação de castigos — ao expulsar uma aluna da sala, ele a obriga a permanecer do lado de fora sem descansar o corpo contra a parede.
Há apenas uma estudante com quem Samet é afetuoso, Sevim (Ece Bagci), que parece destoar desse ambiente conservador. Chega a presenteá-la com um estojinho de maquiagem. Talvez seja carinhoso em demasia — o pedido de segredo quanto ao mimo, a falta de luminosidade durante um diálogo e olhares furtivos no pátio permitem supor um caso de assédio sexual.
Seja verdade ou não, Samet acaba acusado de contato inadequado por duas estudantes. A mesma acusação recai sobre um colega, Kenan (Musab Ekici), com quem ele mora.
Isso acontece pouco depois de os dois conhecerem outra professora, Nuray (Merve Dizdar), uma ativista que perdeu a perna em um atentado à bomba e com quem formarão uma espécie de triângulo amoroso, e um pouco antes de Ervas Secas completar sua primeira hora de duração. Dali em diante, o filme continuará investindo em longos diálogos — coisa de 10, 15 minutos — sobre temas que vão da aceitação da condição humana à renúncia do exercício da cidadania. Aqui e ali, a hegemonia da palavra é quebrada por cenas observacionais nas quais a edição não demonstra pressa. E haverá também um momento desconcertante de distanciamento brechtiano: retomando a ideia da neve como manto encobridor, Nuri Bilge Ceylan revela engrenagens, aponta o quanto a superfície pode ser traiçoeira, nos lembra que somos todos personagens, estamos sempre desempenhando papéis.
Embora não seja hermético nem prescinda do desenvolvimento de uma trama, Ervas Secas tem uma duração, um ritmo e uma verborragia que podem ser indigestos para parte do público. Vale o alerta dado pelo perfil Cinemacrica no Instagram: "A ansiedade epidêmica torna pertinente o aviso de que esse não é um filme feito para todos. Imperdível para os contempladores, impensável para os cronometradores".
Na Folha de S.Paulo, Inácio Araújo fez coro: "Apreciar Ervas Secas significa renunciar ao frenético tempo contemporâneo (isto é, dos filmes contemporâneos) para entrar em outro, talvez atemporal, onde os personagens se delineiam através de seus olhares, seus gestos e de suas falas — este é, afinal, um filme do diálogo —, fugas, esquecimentos. A deriva é a única constante".
No Meio Amargo, Bruno Carmelo escreveu: "O diretor chega ao ponto da carreira em que apresenta amplo domínio da estrutura, da construção das imagens e de seus objetivos. Pode estender a narrativa sem esgotá-la, preservando um bom ritmo, entre a contemplação e a tensão. Consegue construir personagens em textos ricamente roteirizados e ensaiados, embora sejam encenados com naturalidade exemplar. Fotografia, montagem, direção de arte e atuações convergem para a sugestão de uma falha estrutural grave, que atravessa os protagonistas, mas não começa com eles, e nem terminará com o fim de suas jornadas".
No site cinemaescrito.com, Ivonete Pinto explicou o contexto sociopolítico (importante ter em mente que a Turquia é um país entre o Ocidente e o Oriente, marcado por um debate entre tradição e progresso civilizatório, e que há 20 anos é comandado por Recep Tayyip Erdogan, seja como primeiro-ministro, seja como presidente), fez uma bela análise do hobby de Samet, que fotografa retratos dos habitantes locais, e associou o cineasta aos escritores russos Anton Tchekhov (1860-1904) e Fiódor Dostoiévski (1821-1881): "Os filmes de Ceylan, mesmo lentos, sustentam-se pelos diálogos rápidos, sem maiores concessões ao público estrangeiro, no sentido de que não explicam o contexto como seria explicado numa narrativa clássica hollywoodiana. Aliás, a quantidade de diálogos é sua marca registrada. Do mesmo modo que lhe permite sinalizar para os meandros das relações, filia seus filmes ao estilo tchekoviano, sempre evocado por ele mesmo nas entrevistas, ao defender sua preferência por personagens comuns em histórias comuns, que usam realisticamente a fala para expressarem-se. E fala-se muito na vida real. (...) Indo além, convém não perder de vista que o protagonista é um tipo de homem sem qualidades, que se expõe nas mais de três horas do filme em dilemas filosóficos e éticos, recheados de um niilismo dostoievskiano. Samet é também um homem vazio, tal qual um Stiepan Trofímovitch de Os Demônios, e sombrio como Raskolnikov de Crime e Castigo. Tem uma retórica que defende a correção, mas não titubeia em agir desonestamente diante de determinadas situações, evidenciando que as contradições humanas não têm limites".
Outros críticos recorreram à hipérbole. Em um grupo do Facebook que agrega notas para os filmes, Francisco Carbone, do Cena de Cinema, não deu 10, mas 11 para Ervas Secas. Já Maria do Rosário Caetano, na Revista de Cinema, disse que "o cinema de Ceylan é epifânico" e comparou ver o filme com "uma visita a uma catedral, ao Museu do Louvre, do Prado ou do Vaticano".