Por Diana Corso
Psicanalista
Bella Baxter, a protagonista do filme Pobres Criaturas, é uma mulher concebida como experimento científico. A criação do escritor Alasdair Gray foi recriada pelo cineasta Yorgos Lanthimos e trazida à vida pela atriz Emma Stone. O filme é uma imersão lisérgica na estética vitoriana futurista (steampunk).
A atmosfera é frankensteniana, o que, apressadamente, faz pensar em uma atualização do mito. Só que Pobres Criaturas parece ser mais um tributo à escritora Mary Shelley do que a seu personagem. Em Frankenstein, criador e criatura se confundem, tanto que os chamamos pelo mesmo nome. Com Bella, há pontos de contato, mas as diferenças também se fazem ver. Desta vez, é com Shelley que Bella se entremeia.
O monstro criado por Frankenstein é uma criatura abandonada, enfurecida, em busca de um pai. Bella tem um pai e busca, sem dar-se conta, uma mãe. Mary também foi órfã de mãe, que morreu no parto. Cresceu entre homens geniais, casou-se com um deles, mas ganhou brilho próprio.
A escritora também precisou construir uma versão pessoal da mãe para, a seu modo, espelhar-se nela. Mary Wollstonecraft, sua famosa mãe, escreveu um dos primeiros manifestos feministas da história, a Reivindicação dos Direitos da Mulher. Defendia o direito à instrução e à participação, negados a seu gênero. Queria que a Revolução Francesa se estendesse às mulheres.
William Godwin, seu pai, está no nome do criador de Bella: Godwin Baxter. No filme, o cientista é sugestivamente chamado de God. A cobiça de se equiparar a Deus era explícita. Já o verdadeiro Godwin foi um polemista. Embora incensado, dedicou à falecida esposa uma biografia que a deixou exposta ao escárnio da moral vitoriana. Mulheres proeminentes incomodam.
Para a filha órfã, sua mãe – com quem compartilhava o nome –, era um enigma a decifrar. O filme trata dos meandros da identificação feminina e da oposição à dominação masculina. A progenitora de Bella se suicidou, afogando consigo a bebê que em breve nasceria. A mãe de Shelley tentou o suicídio, antes da união com Godwin. Na peculiar síntese de Bella, os corpos foram fundidos em um, Baxter implantou o cérebro da filha no cadáver da mãe e reanimou essa estranha fusão. Mary também foi habitada, simbolicamente, pelo cérebro da mãe.
O pária criado por Frankenstein não carregava nada do seu criador, que, horrorizado com o resultado, o renegou. A história dos dois é um embate de ressentimento e eterno desencontro. O monstro o acusa de abandono, do qual se vinga matando aqueles que seu criador amava.
Bella, por sua vez, foi amada pelo criador, que se comportou de modo paternal. Manteve-a reclusa, como fazemos com os bebês, para protegê-la, e, quando ela desejou partir, deixou-a livre. Ambas criaturas monstruosas têm a mesma origem, mas destinos distintos. E divergem quanto ao acervo deixado pela educação. O monstro imaginado por Shelley era desamparado e autodidata; Bella, amada e instruída.
Ema Stone alcançou o efeito dramático pleno dessa transformação, do corpo de mulher balbuciando e claudicante como um bebê, que foi amadurecendo às pressas. Como Mary, formou-se entre homens cultos, tendo como enigma a feminilidade, expressa em sua sexualidade exuberante e liberta. Ambas partiram enamoradas por homens em quem seus pais não confiavam.
Herdeira intelectual da mãe, Mary foi educada, mas não cresceu nos braços de nenhuma mulher relevante como ela. Essa orfandade a levou a criar o mito literário do monstro infeliz, uma metáfora de si mesma: ímpar entre homens, deslocada e reivindicando o reconhecimento que a mãe quis para as mulheres.
Sua conterrânea Virginia Woolf definiu bem a origem comum de muitas mulheres pensantes da sua época. Chamou-as de “filhas dos homens instruídos”. Como suas mães, elas não tiveram acesso às escolas que seus irmãos frequentavam. Mas foram aceitas nos círculos intelectuais do pai e tiveram acesso a sua biblioteca. Foram estimuladas a aprender e dar opinião, desde que dentro de casa.
O que a metáfora da fusão de corpos em Bella nos sugere é que toda mulher é um pouco mãe de si mesma. Ela se constrói a partir de uma investigação meticulosa da mente da mãe, da qual se apropria e distorce a seu modo. O livro de Woolf, Rumo ao Farol, é um relato dessa curiosidade da mulher mais jovem sobre uma mãe, que a fascina.
Cada geração de mulheres cria um mundo novo para si. As mais velhas têm projetos e frustrações emudecidas. As descendentes realizam, em geral sem ter isso consciente, alguns sonhos de suas antepassadas. Entre elas, a distância estabelecida pelo silêncio da incompreensão e da comparação dolorosa cria uma espécie de orfandade, que é incentivado pela insistente culpabilização da mulher.
Há uma sabedoria feminina que não nasce com a carne. Ela se construiu entremeada por esses destinos do corpo de mulher, mas é oriunda da experiência histórica milenar que nunca fez parte da história oficial. A partir do século 19, as mulheres vêm se fazendo ouvir, revendo esse caminho silenciado.
Bella vinga Wollstonecraft e Shelley. Sua caminhada é dolorida, mas ela é filha de um tempo em que as mulheres não aceitam mais o ostracismo. Talvez, como ela, muitas jovens contemporâneas sintam a estranha sensação de carregar suas mães em si, em uma convivência, essa sim, ainda silenciosa.