Não é à toa que se chama Cinema Inflamável a produtora do diretor cearense Karim Aïnouz. Seu novo filme, Motel Destino (2024), botou fogo na gelada noite de abertura do 52º Festival de Cinema de Gramado — o termômetro da rua marcava 5ºC quando deixei o Palácio dos Festivais, por volta das 21h20min desta sexta-feira (9).
Organizado pela Gramadotur, uma autarquia do município, o festival começou oficialmente à tarde, com os discursos das autoridades e o concerto da Orquestra Sinfônica de Gramado — que fugiu da tradição de interpretar trilhas cinematográficas ao incluir no repertório o tema comemorativo das vitórias do piloto de Fórmula-1 Ayrton Senna, para lembrar os 30 anos de sua morte, em 1º de maio. Nesta edição, o Tapete Vermelho ganhou pelo menos duas novidades. Uma delas era móvel: um homem vestido de Kikito circulou e posou para fotos na passarela. A outra, estática: um telão foi instalado na fachada do Palácio dos Festivais, para o público externo assistir aos discursos de apresentação dos filmes, às homenagens e às cerimônias de premiação. Do lado de dentro, os espectadores podem ver as entrevistas conduzidas pela atriz Catharina Conte (bem preparada e descontraída, vale frisar) com os artistas que estão chegando.
Hors-concours, Motel Destino foi o único filme exibido na primeira noite. A competição pelos Kikitos que serão entregues no dia 17 de agosto se inicia neste sábado (10), com O Clube das Mulheres de Negócios, de Anna Muylaert, em uma programação que também tem o Troféu Oscarito, para o ator Matheus Nachtergaele, e outra sessão especial, a do episódio de estreia da série Cidade de Deus: A Luta Não Para.
Envolvido com a produção de um trabalho na Europa, Karim Aïnouz não pôde vir, mas, em um vídeo gravado, mandou "carinho para o povo gaúcho, que se uniu para enfrentar uma tragédia" (a da enchente de maio) e celebrou a realização do Festival de Gramado — que, desde seu surgimento, em 1973, nunca deixou de acontecer, mesmo que somente de forma remota, como na pandemia. O filme foi representado pelo elenco — Fábio Assunção, Nataly Rocha e o estreante Iago Xavier — e por dois de seus produtores, Janaína Bernardes e Fabiano Gullane.
Depois dos 12 minutos de aplauso no Festival de Cannes, onde Motel Destino foi o único concorrente latino-americano à Palma de Ouro, conforme lembrado pelos apresentadores no Palácio dos Festivais, Marla Martins e Roger Lerina, estavam todos animados e ansiosos para saber como seria a recepção do filme na sua primeira exibição pública no Brasil, às vésperas do lançamento comercial, em 22 de agosto. Talvez tenham ficado desapontados: as palmas foram mais tímidas do que Motel Destino merece.
Prestigiado nos três grandes festivais da Europa — competiu cinco vezes em mostras de Cannes (Madame Satã, O Abismo Prateado, A Vida Invisível, que venceu o prêmio Um Certo Olhar, Firebrand e Motel Destino), duas em Veneza (O Céu de Suely e Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, em parceria com Marcelo Gomes) e uma em Berlim (Aeroporto Central) —, Aïnouz tem uma obra que dialoga com a do italiano Luca Guadagnino. Para ambos os cineastas, o sexo é vital — ou um instrumento de poder; o corpo de seus personagens, uma paisagem a ser explorada; o desejo, um doce carrasco. Por coincidência, nesta temporada os dois lançaram filmes sobre triângulos eróticos em que dois homens se envolvem com a mesma mulher, mas pelo menos um deles também sente atração pelo outro. Guadagnino fez Rivais (2024), ambientado no mundo do tênis, e o brasileiro colocou o jovem Heraldo (papel de Iago Xavier) para sacudir o cotidiano do motel de beira da estrada administrado pelo casal Elias (Fábio Assunção) e Dayana (Nataly Rocha) no litoral do Ceará.
Rodadas em Beberibe, as primeiríssimas cenas retratam as célebres falésias locais, permanentemente sob a ação erosiva do mar. É como se fosse uma tradução visual do quão transformador e marcante o desejo sexual pode ser. "Tem gente que não sai da nossa mente. Fica ali, gravado", dirá mais tarde uma coadjuvante.
Nesse cenário praiano, conhecemos o protagonista, Heraldo, que está pensando em largar a vida bandida e se mudar para São Paulo. Antes, porém, ele precisa quitar a dívida com uma chefona do tráfico de drogas. Ela lhe dá uma missão, mas Heraldo, por causa de sexo, acaba errando feio e vira alvo da tal de Bambina. Sua saída é se esconder no Motel Destino, onde passa a trabalhar para Elias ao mesmo tempo em que se engraça com Dayana.
O enredo e o próprio nome do estabelecimento aludem a uma das inspirações de Karim Aïnouz, um filme símbolo tanto do cinema noir da década de 1940 quanto dos thrillers eróticos dos anos 1980: O Destino Bate à sua Porta, título dado no Brasil para The Postman Always Rings Twice (O carteiro sempre toca duas vezes), novela de James M. Cain adaptada pelo diretor Tay Garnett em 1946 e por Bob Rafelson em 1981. Aliás, o fatalismo associado à palavra que batiza o motel fez com que fosse empregada em várias versões nacionais das obras noir: Curva do Destino (1945), O Destino se Repete (1947), Na Teia do Destino (1949). E repare na semelhança da trama: na história ambientada à época da Grande Depressão dos EUA, um errante vai parar em um restaurante na beira da estrada, onde consegue um emprego e engata um caso com a fogosa e maltratada esposa do dono.
Em Motel Destino, Aïnouz trocou o preto e branco do cinema noir pela direção de fotografia em tons de azul e vermelho da francesa Hélène Louvart, a mesma de A Vida Invisível (2019), Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020) e A Filha Perdida (2021). E, não bastasse o calor nordestino, não bastasse o despudor nas cenas de sexo, não bastasse a onipresença dos gemidos, dos rangidos de cama e dos urros de gozo no som ambiente, o diretor brasileiro esquentou ainda mais as coisas ao tornar o forasteiro um objeto do desejo também do marido traído — ainda que nunca assumido com todas as letras. "A gente veio te convidar para fazer uma baguncinha", é o que Elias diz para chamar Heraldo a um churrasco na piscina.
Os diálogos escritos por Wislan Esmeraldo com a colaboração do próprio Aïnouz e de Maurício Zacharias não são sempre explícitos, mas o corpo fala. O olhar grita. O elenco manda bem: Iago Xavier equilibra a inocência, a impulsividade e a incerteza da juventude de seu personagem. Nataly Rocha vai do desencanto ao tesão, da submissão à revolta. Fábio Assunção junta sua maior experiência com o privilégio de encarnar um tipo muito ambíguo: Elias é uma figura ora ameaçadora, ora patética, ora decadente, ora vigorosa. Em uma determinada cena, as expressões do rosto do ator são um espetáculo à parte, espelhando quase sentimentos conflitantes.
Não se pode deixar de mencionar o elenco não humano. A presença de jumentos, gatos, um bode, uma cobra e um cavalo funciona como um lembrete da nossa animalidade e da nossa subordinação aos instintos.