Acaba de reestrear nos cinemas Durval Discos (2002), que recebeu sete Kikitos no Festival de Gramado: melhor filme brasileiro de ficção pelo júri, pelo público e pela crítica, direção (Anna Muylaert), roteiro (assinado pela própria diretora), fotografia (Jacob Solitrenick) e direção de arte (Ana Mara Abreu, que reprisou a conquista em 2023, com Tia Virgínia).
Fazendo jus ao título e ao principal cenário, uma loja de LPs, é um filme com lado A e lado B: começa como comédia sobre a vida besta de um quarentão vendedor de vinis, Durval (Ary França), que ainda mora com a sua mãe (Etty Fraser), e depois vira algo agonizante.
Seu relançamento abre a nova edição da Sessão Vitrine Petrobras, com ingressos a preços acessíveis. O projeto também patrocinou a digitalização do longa-metragem, que em Porto Alegre pode ser visto no CineBancários, no Espaço Bourbon Country e na Sala Paulo Amorim.
Cineasta de outros títulos premiados, como É Proibido Fumar (2009), ganhador de oito Candangos no Festival de Brasília, e Que Horas Ela Volta? (2015), laureado em Berlim e em Sundance, e atualmente envolvida com O Clube das Mulheres de Negócios (previsto para estrear em 2024) e A Melhor Mãe do Mundo (cujas filmagens recém começaram), a paulista Anna Muylaert, 59 anos, conversou por telefone com a coluna. Confira:
Entrevista: Anna Muylaert, diretora de "Durval Discos"
O que você lembra da sessão de Durval Discos no Festival de Gramado?
O Carlão (Carlos Reichenbach, cineasta premiado em Gramado por Filme Demência e Anjos do Arrabalde, morto em 2012) me disse: "Se saírem até 30 pessoas no meio da exibição, tá normal". Eu me sentei lá atrás, queria ver quantos iam sair do Palácio dos Festivais. Não saiu ninguém. Foi uma das maiores alegrias da minha vida.
Por que relançar o filme mais de 20 anos depois?
Essa é uma pergunta mais para a Silvia Cruz (sócia-fundadora da Sessão Vitrine Petrobras), mas o filme passou na Mostra Internacional de São Paulo no ano passado, foi sucesso, e tem um movimento na internet meio permanente de gente que quer ver, de gente que quer uma segunda parte. Há uma geração de filmes que, se não forem digitalizados, ficam para trás, viram só memória.
Durval Discos vai da comédia urbana ao suspense policial, passando pelo drama existencialista e roçando no absurdo. De certa forma, antecipou a fluidez de gêneros consolidada pelo sucesso de Parasita (2019), não?
No primeiro laboratório de roteiro do Festival de Sundance que teve no Brasil, perguntei para o Vondie Curtis-Hall (ator, diretor e roteirista estadunidense): você acha que é um problema o filme ter essa oscilação de mood, ser mais alegre no lado A e mais agonizante no lado B? Acha que devo limpar? Ele me respondeu: "Anna, o cinema moderno é isso, ninguém mais quer ver um dramalhão ou só uma comédia". E na verdade os irmãos Coen já faziam isso, Fargo (1995) já era assim. Acho que já havia essa tendência, talvez não no Brasil. Decidi que nunca mais iria tentar fechar um filme numa coisa só. É o cinema de que eu gosto, o que mistura.
A partir de Durval Discos, você firmou seu nome no cinema brasileiro, assinando filmes premiados como É Proibido Fumar (2009) e Que Horas Ela Volta? (2015). Como você avalia o espaço e o reconhecimento das diretoras na indústria nacional?
Em 2016, 2017, tive uma reunião com uma agente em Los Angeles. Ala disse que, antes de tudo, queria saber uma coisa: como é que uma mulher brasileira decide dirigir cinema? Você tinha ideia de que era impossível? Mas eu tinha um fé tão grande, uma determinação tão grande, que achava que era possível. Hoje, em retrospecto, vejo que o machismo era pior. Nasci em 1964, a onda feminista dos anos 1960 eu vivi criança. Na minha cabeça, o feminismo já tinha feito o seu trabalho, a gente podia ir pra faculdade, transar antes do casamento, podia trabalhar. A Tata Amaral (diretora de A Hora da Estrela) era minha colega de universidade. Nunca falamos de feminismo na época, achávamos que estava tudo certo. Vivíamos nessa ilusão. Quando entrei no mercado de trabalho, percebi que era muito diferente. Era maltratada, desrespeitada, humilhada. Mas eu achava que a culpa era minha, não tinha uma visão global. Achava que era por eu ser tímida, não sabia me defender. Não tinha claro que o fato de ser mulher me complicava a vida. Segundo a Ancine, apenas 19% dos filmes brasileiros são dirigidos por mulheres. Continua um domínio masculino, mas hoje o problema está colocado na mesa, a gente entende melhor, reivindica mais. É um problema milenar, e a solução não vai levar menos do que um século. O mais importante é entender quando é machismo e quando não é. Acho que as mulheres estão mais conscientes da questão de gênero. E antes de 2015 ninguém me ligava porque queria uma diretora, agora, quando o tema é feminino, (os produtores) já preferem que uma mulher dirija. O problema não é só brasileiro. Fiz uma contagem de 60 anos dos ganhadores do Oscar de melhor filme. Somente quatro tinham protagonismo feminino, sendo que em dois casos era repartido com um personagem masculino (os títulos citados são Bonequinha de Luxo, Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Conduzindo Miss Daisy e Menina de Ouro). Agora há pouco é que tivemos Nomadland e Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (vencendo o Oscar). O (Stanley) Kubrick, diretor que mais amo, só tem homem como protagonista. Quando você percebe isso, saca que a sua desvalorização profissional também ocorre na frente das câmeras. O dinheiro prefere os homens.
Quais são seus próximos projetos?
O Clube das Mulheres de Negócios é um filme que já está em fase de finalização e acho que conversa com o Durval Discos, é mais louco (a sinopse diz que está "ambientado em um mundo imaginário onde os estereótipos de gênero estão invertidos, ou seja, as mulheres ocupam as posições de poder, enquanto os homens são criados para serem socialmente submissos"). É um filme sobre estruturas de poder e sobre gênero também. Traz no elenco Irene Ravache, Louise Cardoso, Grace Gianoukas, Cristina Pereira, Itala Nandi e Polly Marinho. Na trama, mulheres poderosas, num dia de folga, recebem a visita de dois jornalistas. Uma série de situações absurdas vai revelando questões de gênero e de classe. Esse vai estrear em 2024. E agora começaram as filmagens de A Melhor Mãe do Mundo, com Shirley Cruz e Seu Jorge (o filme, diz a sinopse divulgada após esta entrevista, é sobre a jornada de uma catadora de materiais recicláveis em São Paulo que decide prestar queixa em uma delegacia após sofrer abusos do marido, mas não encontra lá a proteção que procura).