Grande vencedor do Festival de Gramado de 2002 — foram sete Kikitos, fora os muitos aplausos em cena aberta, durante a projeção —, Durval Discos acaba de voltar a cartaz nos cinemas. Trata-se do primeiro filme da nova edição da Sessão Vitrine Petrobras, com ingressos a preços acessíveis. O projeto também patrocinou a digitalização do longa-metragem de estreia da diretora Anna Muylaert (leia entrevista clicando aqui), que havia sido premiada pelo curta A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti (1995) e sido roteirista da série de TV Castelo Rá-Tim-Bum (11 episódios entre 1994 e 1996), e que depois se consagraria novamente com títulos como É Proibido Fumar (2009), ganhador de oito Candangos no Festival de Brasília, e Que Horas Ela Volta? (2015), laureado em Berlim e em Sundance. Em Porto Alegre, a cópia em 4K pode ser vista no CineBancários, no Espaço Bourbon Country e na Sala Paulo Amorim.
Durval Discos (2002) gira em uma rotação cambiante. Vai da comédia urbana ao suspense policial, passando pelo drama existencialista e roçando no absurdo — sem sofrer arranhões. Em Gramado, o título produzido pela gaúcha radicada em São Paulo Sara Silveira recebeu os troféus de melhor filme brasileiro de ficção pelo júri, pelo público e pela crítica, direção, roteiro (assinado pela própria Muylaert), fotografia (Jacob Solitrenick) e direção de arte (Ana Mara Abreu, que reprisou a conquista em 2023, com Tia Virgínia).
O longa retrata a vida besta do dono de uma loja de discos de vinil, o quarentão Durval (Ary França), e de sua mãe, Carmita (Etty Fraser, morta em 2019, aos 87 anos). O cenário é o bairro classe média paulistano do Pinheiros, descortinado no movimentado plano-sequência da abertura: os nomes do elenco e da equipe — como Marisa Orth, no papel de uma vendedora de doces, e André Abujamra, autor da trilha sonora — aparecem em placas de rua, cartazes, tabelas de preços de padarias, fliperamas, açougues, chaveiros e cabeleireiros.
Quando a história começa, Anna Muylaert aposta em longos planos de conjunto, quase sem closes — o espectador parece sentar-se no sofá na casa de Durval, sujeito que resiste à mudança: acredita na superioridade do vinil na então era do CD, só escuta clássicos setentistas de Tim Maia, Jorge Ben e Novos Baianos, mantém os cabelos compridos e, sobretudo, ainda vive com a mãe controladora.
A rotina tediosa é brevemente interrompida quando a cantora Rita Lee, em uma participação especial, entra na loja à procura "daquele LP do Caetano, capa branca com assinatura". E é quebrada de vez quando uma empregada (Letícia Sabatella) some, deixando para trás uma garota de cinco anos, Kiki (Isabela Guasco). A alegria da criança contamina Durval e Carmita, mas logo um telejornal informa: ela foi sequestrada.
É aí que Muylaert vira o disco, mostrando que o filme tem um lado A, mais alegre, e um B, mais agonizante: mãe e filho enfim se confrontam. Fazem-se ouvir o despertar do ciúme, a redescoberta de uma graça de viver e a agonia de cortar o cordão umbilical. A dor lancinante é brilhantemente traduzida no clímax de Durval Discos pelos versos iniciais de Pérola Negra, de Luiz Melodia: "Tente passar pelo que estou passando / Tente apagar este teu novo engano / Tente me amar, pois estou te amando / Baby, te amo, nem sei se te amo".