Em cartaz a partir desta quinta-feira (2) nos cinemas, Mussum: O Filmis (2023) foi o grande vencedor do 51º Festival de Gramado, em agosto. A dramatização — mas com muita comédia — da vida de um dos maiores artistas populares do Brasil conquistou seis Kikitos: melhor filme entre os longas-metragens nacionais, ator (Ailton Graça), ator coadjuvante (Yuri Marçal), atriz coadjuvante (Neusa Borges), trilha musical (Max de Castro) e júri popular.
Ao receber este último prêmio, o diretor Silvio Guindane, estreante no comando de longas e ator de séries como Segunda Chamada, Bom Dia, Verônica e Impuros, disse:
— A gente sempre falou que queria fazer este filme para o público. A mínima generosidade de qualquer artista é conseguir fazer o povo pensar, se divertir.
No Palácio dos Festivais, o filme provocou "risis e lágrimis", como diria o humorista Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994), o Mussum, que fez sucesso na música (com o grupo Os Originais do Samba), na TV e no cinema (primeiro na Escolinha do Professor Raimundo, depois com Os Trapalhões). Ele já havia sido biografado no documentário Mussum, um Filme do Cacildis (2018), de Susanna Lira. Baseado em livro de Juliano Barreto, Mussum: O Filmis foi escrito por Paulo Cursino, autor da comédia Tudo Bem no Natal que Vem (2021).
O personagem é interpretado por Thawan Lucas na infância, Yuri Marçal na fase jovem e Ailton Graça quando adulto. No discurso de agradecimento pelo Kikito, Ailton lembrou de sua infância em um barraco, onde ficava ouvindo a TV do vizinho e imaginando que "todo mundo dentro daquela caixinha era preto, porque era assim que todo mundo no meu bairro era". Falou sobre a importância da representatividade no cinema e na TV ("Ainda somos poucos"), enalteceu o samba ("Sempre foi manifesto, sempre foi filosofia, nunca é uma arte menor") e contou uma história sobre sua mãe ter dado uma "arma" para que ele e seu irmão usassem com sabedoria: uma caneta.
Essa história se conecta com a do próprio Mussum e sua mãe, dona Malvina, encarnada no filme primeiro por Cacau Protásio e depois por Neusa Borges. "Burro preto tem aos montes, mas preto burro não dá!", vaticina a personagem, fundamental na formação do filho. Depois, em um momento de crise existencial de Mussum, ela dirá outra frase de levarmos para a vida: "Não se pode sentar em dois cavalos com a mesma bunda".
Como os bordões deixam entrever, Mussum: O Filmis usa de recursos humorísticos para falar de coisas sérias. A cinebiografia registra os conflitos familiares decorrentes do caráter mulherengo de Mussum (mas sem ênfase: não conta que ele teve três filhos fora de seus dois casamentos) e das exigências profissionais. O filme também não esconde que Mussum gostava bastante de beber — quase sempre está com um copo de cerveja ou de uísque nas mãos —, o que acabou sendo incorporado pelo personagem televisivo.
A transformação definitiva de Antônio Carlos em Mussum se dá quando ele é contratado por Chico Anysio (Vanderlei Bernardino) para atuar na Escolinha do Professor Raimundo. A sequência da troca de figurino, com um toque de gênio de Chico, rendeu aplausos em cena aberta no Palácio dos Festivais. Aliás, houve uma comunhão do público com o filme: algumas piadas são telegrafadas, mas mesmo assim provocaram risadas. Entre os momentos engraçados, estão aqueles em que os personagens erram seus exercícios de futurologia. Como quando Mussum tranquiliza seus colegas de Os Originais do Samba, acreditando que o programa de TV d'Os Trapalhões seria coisa de um ano, no máximo dois — só foi terminar duas décadas depois.
O irônico é que algumas das passagens com os outros três Trapalhões — Renato Aragão, o Didi (Gero Camilo), Manfried Sant'Anna, o Dedé (Felipe Rocha), e Mauro Gonçalves, o Zacarias (Gustavo Nader) — podem fazer chorar. Bate uma nostalgia forte da infância nas cenas que reproduzem a vinheta em animação do programa de TV e os clipes paródicos, como Terezinha (de Chico Buarque, na voz de Maria Bethânia).
Mais adiante, há outra cena funga-funga, a do monólogo de Mussum para crianças e adolescentes na escola de samba da Mangueira, onde o ídolo fala sobre as barreiras do racismo, da pobreza e da desigualdade social e estimula sua audiência a sonhar: "A gente pode tudo". É uma frase que casa muito bem com outro trunfo de Mussum: O Filmis: a celebração de negros fundamentais na arte brasileira. Silvio Guindane fez uma espécie de retrato transgeracional e multidisciplinar. Além do próprio humorista, aparecem Cartola (Flávio Bauraqui), Grande Otelo (Nando Cunha), Elza Soares (Larissa Luz), Jorge Ben (Ícaro Silva) e Alcione (Clarice Paixão).
Esse monólogo foi referenciado em um dos discursos mais aclamados na premiação do Festival de Gramado: o de Yuri Marçal, que, a exemplo de Ailton Graça, também conectou a sua trajetória com a de Mussum.
— Quando eu estava estudando teatro e TV, em 2013, um diretor falou assim: "Tem muita gente aqui querendo se formar, muita gente querendo ser ator. Mas uma das pessoas que eu tenho certeza que nunca vai poder ser ator é você, Yuri". Sempre gostei de desafio, então decidi provar para esse diretor e para mim mesmo — relatou o vencedor do Kikito de melhor ator coadjuvante. — A mensagem do filme que mais me emocionou é uma que o Mussum fala no final, sobre a mãe dele ter lutado a vida inteira para ele poder ter oportunidade. Então, quero agradecer neste momento à minha mãe, que eu sei que ela, mesmo sem estudo, batalhou muito para eu ter a oportunidade de fazer o que quiser, de eu poder ter o direito de escolha.