Chorei no final do curta gaúcho Pastrana, mas foi o epílogo de outra produção do RS que me emocionou descontroladamente no 52º Festival de Cinema de Gramado: Memórias de um Esclerosado, documentário sobre o cartunista Rafael Corrêa, que tem esclerose múltipla, dirigido por ele próprio com Thais Fernandes.
Exibido no começo da tarde desta terça-feira (13) no Palácio dos Festivais, foi o ponto alto do quinto dia do festival, que conhecerá os ganhadores dos Kikitos no sábado (17). À noite, houve a sessão do quarto concorrente entre os longas nacionais, Pasárgada, estreia da atriz paraense Dira Paes na direção.
Ela mesma faz a protagonista, Irene, uma ornitóloga que trabalha no Brasil para uma organização internacional. Ao conhecer o guia Manuel (Humberto Carrão), a personagem entra em uma crise existencial e profissional.
O momento mais comovente aconteceu antes da projeção de Pasárgada, quando a cantora Fafá de Belém, em cadeira de rodas por ter machucado o joelho em um acidente doméstico, interpretou à capella a canção Amazônia (2002), trocando um dos versos para homenagear Dira. O filme em si, bastante contemplativo, cobra do espectador a paciência de um observador de pássaros.
A programação noturna foi concluída com os últimos seis dos 12 títulos da competição de curtas-metragens brasileiros: Movimentos Migatórios (BA), de Rogério Cathalá, Navio (RN), de Alice Carvalho, Larinha R. Dantas e Vitória Real, Fenda (CE), de Lis Paim, Ressaca (MG), de Pedro Estrada, A Menina e o Pote (PE), de Valentina Homem, e Ana Cecília (RS), de Julia Regis. Destaque para a história de Fenda, sobre uma mulher negra, a botânica Marta, que vive apartada de suas raízes; para a belíssima animação de A Menina e o Pote e para a atuação da atriz Luiza Quinteiro em Ana Cecília, como a adolescente em fase de revolta e amadurecimento em uma cidadezinha gaúcha, Dom Feliciano.
Memórias de um Esclerosado chegou a Gramado já carregado de prêmios. Em junho, foi o grande vencedor do Cine-PE, o Festival de Recife, onde recebeu cinco Calungas, incluindo melhor filme — tanto pelo Júri Oficial quanto pelo Júri Popular —, ator coadjuvante (para o próprio Rafael Corrêa) e roteiro.
Nascido em Rosário do Sul mas radicado em Porto Alegre há muito tempo, criador das tiras Artur, o Arteiro, autor da coletânea Até Aqui Tudo Bem (22018) e ganhador de pelo menos 50 prêmios em concursos e salões de cartum, Rafael foi diagnosticado com esclerose múltipla em 2010. Dados o ofício e o perfil de seu personagem, o documentário tem sequências de animação e de bom humor. Há também um tanto de sonho e de fantasia: a investigação de Rafael sobre seu passado nos leva ao episódio da morte de um sapo, o que pode, via carma, ser a causa de sua doença. Daí o sujeito vestido de sapo que aparece de vez em quando.
Mas Memórias de um Esclerosado começa de forma dura, acertadamente. Ao simplesmente observar o árduo e complexo processo para Rafael Corrêa tomar um banho, o filme firma nossa empatia pelo protagonista e registra o quão severos são os sintomas dessa doença degenerativa sem cura. Rafael compara os danos neurológicos a um encanamento cheio de furos: a água, ou seja, o comando do cérebro para movimentar os músculos, não vai chegar ou vai chegar no lugar errado.
Não quero dar spoilers sobre o lindo epílogo, que é ornado pela pungente música composta por André Paz. Mas preciso dizer o desfecho mescla a realização de um sonho de Rafael com a celebração da magia do cinema — o toque que torna tudo ainda mais emocionante é um movimento de câmera ao final da cena, revelando engrenagens do onírico.
Quando pintar uma oportunidade, não deixe de ver — Memórias de um Esclerosado está, por enquanto, sem previsão de data de estreia.