Nostalgia, violência urbana e o Rio "tipo exportação" se misturam no episódio de estreia da série Cidade de Deus: A Luta Não Para (2024), que teve sessão hors-concours na segunda noite do 52º Festival de Cinema de Gramado.
A programação deste sábado (10) no Palácio dos Festivais começou com a exibição do primeiro dos sete longas-metragens nacionais que disputam os Kikitos a serem entregues no dia 17 de agosto. Com O Clube das Mulheres de Negócios, a diretora paulista Anna Muylaert participa pela sexta vez do Festival de Gramado, como ela contou no palco. A primeira foi na década de 1980, ainda como crítica de cinema, a anterior havia sido em 2015, abrindo o evento com Que Horas Ela Volta?, e a mais importante foi em 2002, quando Durval Discos ganhou sete prêmios: melhor filme brasileiro pelo júri, pelo público e pela imprensa, direção, roteiro, fotografia e direção de arte.
No discurso de apresentação, Anna disse que O Clube das Mulheres de Negócios é seu filme que mais dialoga com Durval Discos, que tinha um lado A e um lado B, indo da comédia urbana ao suspense policial, passando pelo drama existencialista e roçando no absurdo. O novo título também varia de gênero: pode ser encarado como uma distopia (ou até uma utopia), uma história de humor, um terror, uma crítica sociopolítica, um manifesto ambiental...
Na largada, é uma espécie de "versão gênero" de A Cor da Fúria (1995), filme estadunidense que inverte as relações entre brancos e negros. Na realidade alternativa bolada pela diretora brasileira, o poder é feminino — os Estados Unidos tem uma presidente, Tammy Brown, ouve-se no rádio do carro que está levando dois jornalistas para o tal Clube das Mulheres de Negócios. Eles são encarnados por Luís Miranda e Rafa Vitti — o primeiro usa saia, e o segundo, um cropped que deixa toda sua barriga de fora.
No clube, encontram maridos e namorados submissos ou traídos e são recebidos por personagens arquetípicas. Grace Gianoukas, por exemplo, interpreta uma mulher do agronegócio que, a certa altura, assedia um dos repórteres, tirando o seio da roupa e pedindo: "Dá uma chupadinha?". Katiuscia Canoro é uma militar que profere palavras de ordem do tipo "Grelo duro!" e "Morte às baleias!".
No papel, parece interessante, mas o filme tem uma série de obstáculos. Falta ritmo, o que prejudica o lado cômico. O elenco, que inclui Louise Cardoso, Cristina Pereira e Ítala Nandi, atua de forma heterogênea demais — é como se cada atriz estivesse no seu próprio mundo. E logo as ações são dominadas pelos mistérios e perigos que envolvem três onças geradas por computação gráfica, levando O Clube das Mulheres de Negócios para o subgênero slasher do terror e deixando espectadores sem entender muito bem o sentido das coisas.
Depois do intervalo, o Festival de Gramado entregou o primeiro de seus prêmios honoríficos. Foi o Troféu Oscarito, para o ator, diretor e roteirista paulista Matheus Nachtergaele, 56 anos, outro artista habituê do Palácio dos Festivais. No ano passado, por exemplo, esteve aqui competindo com o drama Mais Pesado É o Céu, do cearense Petrus Cariry. Em 2008, o único filme que dirigiu, A Festa da Menina Morta, conquistou seis Kikitos.
Extremamente carismático, ele falou sobre a angústia do seu trabalho — o ator é um perdido, que só no personagem se encontra; só fica bem quando abrem-se as cortinas de um teatro ou gritam "ação!" em um set; o alívio é o aplauso, o prêmio. Para ilustrar a busca incessante do seu ofício, fechou o discurso declamando um poema de Fernando Pessoa, Eros e Psique. Antes de descer, provocou risos ao confessar que pretendia receber a homenagem com um figurino simplório, mas se deu conta do valor de um Oscarito e pediu ajuda à organização para comprar uma "roupitcha" — "Tô bonito?", perguntou à plateia enquanto fazia poses para os fotógrafos.
A seguir, subiu ao palco a equipe de Cidade de Deus: A Luta Não Para. Foi mais um retorno no Palácio dos Festivais. Seu diretor, o baiano Aly Muritiba, tem quatro Kikitos na estante, pelos longas-metragens Ferrugem (2018) e Jesus Kid (2021). Em 2023, apresentou no Festival de Gramado o primeiro capítulo da série Cangaço Novo, do Amazon Prime Video. Agora, mostrou o ponto de partida do seriado que dá continuidade ao filme Cidade de Deus (2002) e que estreia no dia 25 de agosto na plataforma Max. (E Muritiba também compete neste ano com Barba Ensopada de Sangue, nos longas nacionais.)
Trata-se de mais um produto da onda nostálgica que bateu em Hollywood (em 2024, há pelo menos 30 continuações, prólogos e reinícios, não raro de títulos lançados décadas atrás) e no Brasil. No mesmo Festival de Gramado, veremos, neste domingo (11), Estômago 2: O Poderoso Chef, sequência de uma comédia criminal-culinária de 2007. Em dezembro, chega aos cinemas O Auto da Compadecida 2, em que Selton Mello e Matheus Nachtergaele voltam aos papéis de Chicó e João Grilo, vividos em 2000. E houve até um Avassaladoras 2.0, derivado do filme de 2002.
A Luta Não Para retoma o filme brasileiro que atraiu 3,3 milhões de pessoas aos cinemas e que virou um marco mundial, com quatro indicações ao Oscar: melhor direção (Fernando Meirelles), roteiro adaptado (Bráulio Mantovani, a partir do romance homônimo de Paulo Lins publicado em 1997), fotografia (César Charlone) e edição (Daniel Rezende). A trama se passa em 2004, 20 anos depois dos eventos de Cidade de Deus.
— Eu saí da favela, mas a favela não saiu de mim — conta, na narração em off, Buscapé (Alexandre Rodrigues), que se tornou o principal fotógrafo da guerra travada no Rio.
De um lado, estão os traficantes de drogas, com armamentos bem mais pesados. Do outro, os policiais (e "onde tem polícia, tem morte", diz Buscapé). Nessas duas décadas, surgiu uma terceira frente, que "tem cara de polícia e arma da polícia, mas não é polícia", e que "é mais bandido do que todos os bandidos que já conheci": as milícias, sobre as quais o protagonista promete falar mais adiante.
Antes, Buscapé vai apontando onde estão hoje e o que fazem outros personagens, além de apresentar novos rostos. A montagem intercala cenas do filme de 2002 com imagens feitas para o seriado. Pelo andamento acelerado e pela profusão de nomes, convém ao espectador fazer um tema de casa: rever Cidade de Deus para estar inteirado pelo menos sobre o passado.
Barbantinho (interpretado por Edson Oliveira) agora é candidato a vereador. O policial corrupto Reginaldo, o Cabeção (Kiko Marques), virou o secretário de Segurança Pública. A esposa do Mané Galinha ganhou nome, Cinthia (Sabrina Rosa), que é uma líder comunitária, e Berenice (Roberta Rodrigues) é uma empreendedora. Thiago Martins encarna a versão adulta de Bradock, um dos responsáveis pelo assassinato de Zé Pequeno, hoje cumprindo pena na prisão. Andreia Horta faz o papel de Jerusa, fogosa advogada e namorada de Bradock. E Marcos Palmeira vive Curió, novo chefe do crime organizado, mas também um pai de família — prefere manter a paz na favela na base da diplomacia e do sorriso.
Nos discursos antes da exibição do episódio, integrantes do elenco enfatizaram o que consideram uma evolução.
— Há protagonismo feminino, estamos em um lugar de merecimento — disse Roberta Rodrigues.
— Existe amor, existe afeto, existem mulheres fortes que têm nome na favela — comentou Sabrina Rosa.
De fato, na sua primeira metade o capítulo inicial de Cidade de Deus: A Luta Não Para dá destaque a personagens femininas envolvidas nas suas relações familiares e comunitárias e lidando com suas aspirações, incluindo a mãe de Buscapé e a filha do fotógrafo, a MC Leka. Mas a tônica está na violência, no conflito explosivo pelo poder e pelo dinheiro. A ponto que Buscapé praticamente desaparece da história quando Bradock sai da cadeia e vai reivindicar a Curió seu posto como dono de uma boca — verdade seja dita: a última cena é digna de um episódio de Game of Thrones.
Entrementes, A Luta Não Para promove um desfile das atrações turísticas (incluindo as negativas) do Rio. Apenas nesse primeiro episódio, temos Carnaval, funk, praia, Pão de Açúcar, futebol, feijoada, sexo, drogas, tiroteio e malas cheias de dinheiro. Só faltou o jogo do bicho.