A Netflix adiciou recentemente a seu cardápio uma comédia criminal com sabor brasileiro e inspiração italiana. Estômago (2007), dirigido pelo paranaense Marcos Jorge, por vezes remete às sátiras produzidas naquele país na década de 1970; em outras, o despudor lembra o cinema de Marco Ferreri (1928-1997), autor de A Comilança (1973), Crônica de um Amor Louco (1981) e A Carne (1991).
Baseado no conto Presos pelo Estômago, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, de Lusa Silvestre, Estômago ganhou cinco troféus no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro: melhor filme, diretor, roteiro, ator coadjuvante (Babu Santana) e escolha do público. Seu protagonista é o baiano João Miguel, um dos rostos que se tornaram onipresentes na produção audiovisual nacional no século 21. Esteve em filmes como Cinema, Aspirina e Urubus (2005), Se Nada Mais Der Certo (2008), Xingu (2011) e Pacarrete (2019) e em miniséries e seriados como O Canto da Sereia (2013), A Teia (2014), Felizes para Sempre? (2015) e 3% (2016-2018).
Em Estômago, João Miguel interpreta o paraibano Raimundo Nonato, que desembarga na cidade de São Paulo com a roupa do corpo e, em busca de abrigo, aceita trabalhar por casa e comida fritando coxinhas em um boteco. Os petiscos caem no gosto dos boêmios que frequentam o local, entre elas a prostituta Iria (Fabiula Nascimento) e logo Raimundo irá progredir na vida. Mas como ele narra sua saga de uma cela de presídio, de partida ficamos sabendo que algo ruim ocorreu pelo caminho.
Marcos Jorge conta duas histórias em paralelo que têm em comum o uso que Nonato faz de suas habilidades culinárias para ascender socialmente. Tanto no emprego que arruma em um restaurante quanto no incremento que promove na gororoba servida aos detentos, o que o faz cair nas graças do chefão do xadrez, Bujiú (Babu Santana) e ganhar regalias. Vale prestar atenção nas receitas e dicas que são mostradas, da coxinha de galinha ao espaquete à putanesca, da origem do queijo gorgonzola ao emprego da angustura para dar sabor a drinques.
A figura de Nonato atrás das panelas, experimentando temperos e misturas, parece tão improvável e deslocada quanto a do rato gourmet do desenho animado Ratatouille, lançado no mesmo ano. Mas João Miguel equilibra a verve cômica e o contorno dramático exigido para compor uma figura que transita por luzes e sombras.
Em entrevistas à época da estreia, o ator disse que a história de ascensão e queda de Raimundo tem leitura universal e não apenas regional. O baiano também comparou a dimensão tragicômica do personagem à do palhaço de circo — e foi vestido de palhaço que ele começou sua carreira de ator no Rio, aos 18 anos, atuando nas ruas, em escolas e hospitais, antes estrear no teatro:
— O palhaço me deu mais interação social. Com ela também veio um despojamento, uma desconstrução. Toda tragédia tem um fundo de comédia. Todo humor pode ser triste. O importante é que essa vontade de fazer, de compartilhar, me transformou num ator investigativo. Gosto de fazer pesquisa, e os diretores têm de respeitar isso.