Lançado em 2015, no Festival de Gramado, o primeiro longa-metragem de José Pedro Goulart foi adicionado recentemente ao catálogo do Amazon Prime Video e do NOW. É significativo que o diretor, hoje com 61 anos, tenha batizado sua estreia de Ponto Zero, marco de um recomeço na carreira de um dos fundadores da Casa de Cinema de Porto Alegre, coautor, com Jorge Furtado, dos curtas Temporal (1984) e O Dia em que Dorival Encarou a Guarda (1986) — premiado em Havana e em Huelva — e um dos realizadores do filme em quatro episódios Felicidade É... (1995), ganhador de dois Kikitos.
Percalços financeiros impediram que esse passo para os longas fosse dado antes. O fechamento da Embrafilme pelo governo do presidente Fernando Collor, no início da década de 1990, barrou a adaptação do romance O Jardim do Diabo, de Luis Fernando Verissimo. Já nos anos 2000, o projeto de O Amor de Joel por Jaqueline, surgido da experiência como produtor do ótimo documentário O Cárcere e a Rua (2005), de Liliana Sulzbach, não foi contemplado no Prêmio RGE de Cinema.
Os anos se passaram, Goulart amadureceu e então acabou rodando um filme que é justamente sobre amadurecimento. Seu protagonista é um garoto de 14 anos, Ênio (interpretado por Sandro Aliprandini), às voltas com uma crise familiar, o bullying na escola e os anseios sexuais da puberdade. O pai, um radialista (papel de Eucir de Souza), é dado ao conflito e à ausência. A mãe, que sofre com isso, por vezes faz do filho uma espécie de substituto afetivo, em outras, descarrega nele sua frustração. Já a irmã mais velha mal dá bola para ele. Enquanto isso, Ênio começa a tentar se comunicar com garotas de programa, uma fuga que o levará para uma aventura noturna pelas ruas de Porto Alegre.
Dito assim, parece que veremos um típico drama adolescente. Não.
O caminho seguido pelo diretor e roteirista confere mais simbolismo ao nome Ponto Zero. Suas iniciais saltam aos olhos, como se o título fosse uma aliteração do apelido com o qual Goulart ficou conhecido: Zé Pedro. Este é, portanto, um filme muito pessoal, muito autoral. O veterano estreante abre mão de uma narrativa mais concreta. Busca refletir, com a inestimável ajuda do diretor de fotografia Rodrigo Graciosa e do editor Federico Brioni (premiado no Festival de Gramado), as subjetividades de seu personagem principal. E como essa passagem da infância para a adolescência é um processo íntimo e turbulento, natural que Ênio seja bastante calado, e sua trajetória, bastante acidentada — vale reforçar: este é um filme sensorial, sentimental, o que pode incomodar quem prefere linearidade e causalidade.
Ponto Zero investe na força das imagens e do som (tanto o trabalho de Kiko Ferraz e Chrístian Vaisz, também laureado em Gramado, quanto a trilha composta por Léo Henkin). Por imagem, podemos entender também o diálogo que abre o filme, uma conversa telefônica que vai ao ar no programa do pai radialista. Um sujeito anônimo, mas com voz jovem, pede licença para contar uma história que se passa no espaço sideral:
— É sobre dois astronautas em uma nave em órbita da Terra. A nave todo dia precisa de uns procedimentos externos. Um sai, o outro fica. Isso já virou rotina. Então, um dia acontece um descuido, uma coisa mínima, insignificante: o engate do cabo que segura o sujeito do lado de fora da nave é mal feito. O cara se desprende. O cara que tá dentro fica olhando, o de fora vai se afastando, bem lento.
— Sem volta — comenta o apresentador.
— É, sem volta. Ele tá ali, tão perto da nave, só um palmo, um dedinho, mas isso é o mesmo que 2 mil quilômetros.
Zé Pedro ilustra essa passagem fundindo a imagem da Terra à de uma cena filmada debaixo d'água: na beira da piscina, um adulto brinca com um guri, que acaba caindo e submergindo. O casamento entre o que ouvimos e o que vemos traduz o distanciamento entre Ênio e seu pai.
Há outras soluções visuais dignas de nota enquanto passeamos por cenários porto-alegrenses que incluem a Avenida Farrapos, a ponte do Guaíba, o Morro Santa Teresa e a esquina das ruas Ferreira Viana e Prof. Langendonck (no bairro Petrópolis). A certa altura, carros e ônibus são vistos trafegando para trás — Ênio "sente-se na contramão do mundo a sua volta", resumiu bem meu colega Daniel Feix à época da estreia nos cinemas. Em outro momento, o protagonista anda de bicicleta por diversos cenários: o pátio do colégio, a cozinha de casa, a sala de aula, o quarto onde um casal transa, o estúdio de rádio. Ninguém o percebe. É como se Ênio quisesse ser invisível? Ou, como também é característico na adolescência, quisesse voltar ao tempo da infância despreocupada? Ou então é como se as pessoas estivessem alheias a sua angústia? A interpretação cabe a nós, e esse é um dos pontos positivos de Ponto Zero.