Filmes de zumbi sempre se prestam a metáforas sobre a época em que foram gestados. Basta observar a carreira do seu mestre, George A. Romero (1940-2017). A Noite dos Mortos-Vivos (1968) é uma alegoria política sobre as minorias vítimas de intolerância e preconceito nos Estados Unidos. Em O Despertar dos Mortos (1978), o diretor criticou o consumismo, e em Dia dos Mortos (1985), o militarismo da Era Reagan. Terra dos Mortos (2005), por sua vez, aludiu à desigualdade social, tanto no âmbito das cidades quanto na geopolítica mundial.
Em cartaz a partir desta quarta-feira (23) na plataforma de streaming Reserva Imovision (que pode ser acessada via Amazon Prime Video), A Tristeza (Ku Bei, 2021) reflete explicitamente a pandemia de coronavírus declarada em 11 de março de 2020 que atingiu 231 países ou territórios e matou pelo menos 7 milhões de pessoas. Mas o filme taiwanês vai além da referência e conquista a atemporalidade, adquirindo contornos de fábula — uma fábula muito violenta e muito sangrenta, convém avisar.
O lançamento na Reserva Imovision faz parte do acordo firmado com a plataforma estadunidense Shudder, especializada em títulos de terror. A parceria já trouxe a pedrada dinamarquesa Não Fale o Mal (2022), de Christian Tafdrup, e o elogiado britânico Stopmotion (2024), de Robin King.
A Tristeza foi exibido em Porto Alegre na 18ª edição do festival internacional de cinema fantástico da Capital, o Fantaspoa, um ano depois de outro filme de apocalipse zumbi vindo de Taiwan. Se em Get the Hell Out (2020, indisponível no streaming)) o diretor I-Fang Wang ofereceu uma delícia hipercalórica na qual mesclava a ação exagerada e a comédia política, em A Tristeza o realizador canadense radicado no país asiático Rob Jabbaz apresenta um cardápio bem pesado. Não há açúcar, embora haja afeto.
É o que une o par central, o jovem casal Jim (interpretado por Berant Zhu) e Kat (vivida por Regina Lei). Eles acordam para mais um dia em Taipé, capital do país onde ninguém está levando muito a sério uma pandemia — que surgiu "justo em ano eleitoral", ouve-se em um comentário na TV. Assim que Jim deixa Kat na estação do metrô, o terror toma conta da cidade.
Embora as criaturas com imensos olhos negros e corpos em decomposição nunca sejam formalmente nomeadas como zumbis, podemos enquadrar A Tristeza dentro desse subgênero do terror. Estão lá, por exemplo, a rápida contaminação, as hordas incontroláveis e a explosão de violência e de sangue — que inclui membros decapitados por tesouras de jardinagem, olhos perfurados com um cabo de guarda-chuva, torturas com arame farpado, mordidas que dilaceram a vítima, estupros coletivos, atos de necrofilia... Tudo é acompanhado pelo ponto de vista sempre aflito de Jim e Kat, um à procura do outro em meio ao caos, pela música tensa composta por Tzechar e pela epidérmica direção de fotografia do estreante Jie-Lie Bai.
A Tristeza também foi o primeiro — e, por enquanto, o único — longa-metragem de Jabbaz, após assinar curtas de animação. Para escrever o roteiro, ele se inspirou na história em quadrinhos Crossed, publicada entre 2008 e 2010 pelo roteirista Garth Ennis (o mesmo do seriado The Boys) e pelo desenhista Jacen Burrows. Como na HQ, os protagonistas do filme são gente como a gente, propensos ao erro e ao medo; Deus não existe, ou no mínimo é um piadista sacana; e as autoridades vivem nos ferrando — estamos sozinhos contra o mundo.
Também como na HQ, os monstros do filme não são exatamente mortos-vivos. São, nas palavras do diretor, "as piores versões de nós mesmos": indivíduos conscientemente movidos apenas pelo ódio, pelo prazer próprio, pelo sadismo latente que ajuda a explicar o sucesso de séries como a sul-coreana Round 6 e programas como o Big Brother Brasil, com seu vocabulário autoexplicativo: paredão, teste de resistência, jogo da discórdia.
Assim, A Tristeza configura-se muito menos como uma alegoria violenta da pandemia do que uma distopia psicopolítica: o que seria de uma sociedade polarizada se a gente só atendesse aos impulsos do id? Que civilização seria possível se não houvesse as instâncias mediadoras e repressoras do ego e do superego? E em que velocidade todas as construções sociais podem ruir, fazendo desaguar um contagiante e interminável banho de sangue?
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