Enquanto não estreia no Brasil Anora (2024), ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes e um dos títulos mais cotados para receber indicações ao Oscar — teve seu lançamento adiado de 31 de outubro para 23 de janeiro de 2025, na semana seguinte ao anúncio da Academia de Hollywood —, a dica é assistir ao filme anterior do diretor Sean Baker: Red Rocket (2021), adicionado neste mês ao menu da Netflix.
Aos 53 anos, Baker é um dos nomes do cinema independente estadunidense mais adorados pela crítica, mas isso não quer dizer que seus filmes sejam pouco acessíveis pelo grande público. Na sua obra, ele imprime um olhar humanizado e caloroso para os marginalizados, como moradores da periferia, imigrantes ilegais e trabalhadores do sexo — o premiado Anora, por exemplo, é sobre uma stripper e garota de programa que acredita ter encontrado o amor com um cliente recorrente, um jovem russo milionário. Em nome do realismo e do naturalismo, não raro esses tipos são vividos por atores amadores. O elenco de personagens convida a um comentário crítico, mas com senso de humor, ao contexto sociopolítico dos Estados Unidos.
Baker estreou como diretor em Four Letter Words (2000), definido como "um estudo da psique masculina pós-adolescente, com uma visão muitas vezes bem-humorada, mas crua e não adulterada, das opiniões, atitudes e linguagem dos jovens na América suburbana". Foi com seu quinto longa-metragem que despontou. Rodado na Califórnia com três smartphones iPhone 5S, Tangerina (2015, disponível na plataforma Filmicca) acompanha uma prostituta transexual, Sin-Dee Rella, que sai da prisão e descobre que o namorado e cafetão está de romance com uma mulher cisgênero.
Seu título seguinte, Projeto Flórida (2017, disponível na Max), rendeu comentários apaixonados e indignados dos escritores Luis Fernando Verissimo e Claudia Tajes em suas colunas em Zero Hora. "Não bastasse darem o Oscar de melhor filme ao pegajoso A Forma da Água, não foi sequer mencionada, que dirá premiada, a atuação inacreditável de Brooklynn Prince. Ela mereceria um Oscar de melhor atriz mesmo que não tivesse nem sete anos de idade", apontou Verissimo.
O filme mostra a vida de quem mora no subúrbio de Orlando, na Flórida, no caminho para o parque da Disney, em motéis de beira de estrada que parecem os velhos conjuntos habitacionais aqui do Brasil e que nos quais se amontoam famílias, muitas delas expulsas de suas casas por causa da crise hipotecária de 2007 nos Estados Unidos. A história é contada pela ótica infantil de Moonee (personagem de Brooklynn Prince), filha de Halley (Bria Vinaite), uma jovem abandonada pelos pais que sobrevive de empregos pontuais e golpes que aplica em turistas. Com seis anos, trata-se de uma menina "quase selvagem, com uma imensidão árida para correr, gritar e aprontar", na descrição de Claudia Tajes, que acrescentou no seu texto: "A situação da menina e sua mãe, o sobreviver dia após dia, a precariedade de tudo. Como parece familiar, apesar do cenário norte-americano", escreveu Claudia. No papel do gerente do motel Magic Castle, Willem Dafoe disputou o Oscar de ator coadjuvante.
Red Rocket é outro trabalho de Sean Baker injustiçado pela Academia de Hollywood. E esse foi completamente esnobado. Mas bem que poderia ter concorrido nas categorias de melhor filme, roteiro original, talvez direção de fotografia e, principalmente, ator, com Simon Rex, que foi laureado no Independent Spirit Awards.
Hoje com 50 anos e visto no recente Pisque Duas Vezes (2024), ele tem um desempenho extraordinário na pele de Mikey Saber, um ator pornô que, por causa da sua decadência em Los Angeles, volta para sua pequena cidade natal no Texas, onde vai tentar se aprumar para, quem sabe, recuperar os tempos de glória. O papel remete à trajetória do próprio Rex, que começou a carreira fazendo cenas solo de masturbação em três filmes pornográficos do estúdio gay Club 1821. Depois, virou modelo da Tommy Hilfiger, da Calvin Klein, da Versace e da Levi's e apresentador da MTV. Na TV e no cinema, teve um breve momento de visibilidade na largada dos anos 2000, ao integrar o sexteto de personagens da série Jack & Jill (1999-2001) e ao encarnar um rapper branco na comédia Todo Mundo em Pânico 3 (2003). Dali em diante, não fez mais nada digno de nota, até alcançar o céu a bordo de Red Rocket.
No início da trama ambientada em 2016, Mikey chega só com a roupa do corpo e com o rosto machucado à casa de madeira habitada por Lexi (Bree Elrod) e a mãe dela, Lil (Brenda Deiss). Logo descobrimos que Lexi é a esposa a quem o protagonista havia abandonado muitos anos atrás — e que foi abandonada pela própria indústria pornô, após ficar "velha". Ele implora por um lugar para dormir e promete fazer serviços domésticos, como cortar a grama, e arranjar emprego para ajudar a pagar o aluguel. Na sua jornada, vão surgir coadjuvantes como um vizinho que costuma vestir um uniforme militar para passear no shopping, uma senhora que trafica maconha com os filhos e uma adolescente que atende na loja de donuts e tem o apelido de Strawberry (encarnada por Suzanna Son, a Chloe da minissérie The Idol).
A época, o cenário e o enredo de Red Rocket permitem ao roteiro escrito por Sean Baker com seu habitual colaborador, Chris Bergoch, refletir sobre a ascensão política de Donald Trump, que foi eleito presidente em 2016 (e, em 2024, pode ser reconduzido à Casa Branca). O slogan trumpista, "Make America Great Again", falou diretamente aos ouvidos de uma população que vivia na miséria, sonhando com os dias de bonança do passado. No filme, as chaminés industriais vistas ao fundo remetem aos tempos de economia pujante. Os personagens acabam depositando esperança em Mikey, um autodeclarado patriota que explora a desgraça alheia em nome do benefício próprio.
Sean Baker investe na comicidade, mas não é complacente no retrato desse sujeito patético, covarde e desprezível. Magnética, a atuação de Simon Rex é fundamental para provocar no espectador um incômodo gostoso e até divertido. Por falar em incômodo, convém alertar aos mais pudicos sobre a crueza das cenas de sexo e dos diálogos sobre o mundo pornô — estes, aliás, dizem muito sobre a mentalidade de Mikey: narcisista, manipuladora, predatória e deturpadora dos fatos, todas características comumente atribuídas a Donald Trump.
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