Faça como eu fiz: vá ao cinema para ver Pisque Duas Vezes (Blink Twice, 2024) sem saber muito mais do que os horários de exibição. Aliás, se quiser, pode até parar por aqui a leitura, para retomar depois de assistir ao primeiro longa-metragem dirigido pela atriz, modelo e cantora estadunidense Zoë Kravitz, 35 anos, filha do astro do rock Lenny Kravitz e de Lisa Bonet, a eterna Epiphany Proudfoot de Coração Satânico (1987). Evite o trailer, para não correr o risco de ser exposto compulsoriamente a alguma informação ou cena crucial. E espero que você nem tenha visto o importante, mas revelador aviso de gatilho distribuído em redes sociais pelo Amazon MGM Studios: este é um filme de suspense que cresce muito — e perturba muito — quando finalmente entendemos o que está acontecendo. Por enquanto, é o grande plot twist de 2024.
Para justificar meu entusiasmo com o filme lançado na quinta-feira (22) em quatro salas de Porto Alegre — Cineflix Total, Cinemark Barra, Espaço Bourbon Country e GNC Iguatemi —, terei de dar spoilers em algum momento, com o devido e prévio alerta.
A primeira virtude que salta ao olhos em Pisque Duas Vezes é o estilo. Zoë Kravitz parece ter sido uma atriz atenta nos sets de filmagem comandados por cineastas como George Miller (em Mad Max: Estrada da Fúria), Steven Soderbergh (Kimi: Alguém Está Escutando) e Matt Reeves (Batman). Na companhia do diretor de fotografia Adam Newport-Berra, da editora Kathryn J. Schubert, do designer de produção Roberto Bonelli e da figurinista Kiersten Hargroder, ela deu vida a um filme com um impacto visual que é realçado pela trilha sonora composta por Chanda Dancy ou pelo emprego de canções de James Brown e Beyoncé. Os planos são intrigantes, os enquadramentos buscam fugir do convencional, e há uma atenção a detalhes capitais do cenário ou da indumentária.
O filme foi escrito por Kravitz com E.T. Feigenbaum. Ela começou a trabalhar no roteiro em 2017, com um outro nome para o filme, que só foi mudar para Pisque Duas Vezes em janeiro de 2024.
ALERTA DE SPOILER.
O título original era Pussy Island, ou seja, Ilha da Buceta. Naturalmente, a Motion Picture Association (MPA), associação que representa os principais estúdios de Hollywood e também plataformas de streaming como a Netflix, encrencou. Não haveria como divulgar o filme em pôsteres e outdoors, nenhum cinema iria querer imprimir o nome em um ingresso.
Mas Zoë Kravitz também encontrou resistência junto ao público feminino. "As mulheres ficaram ofendidas com a palavra, disseram 'Eu não quero ver esse filme', o que é parte da razão pela qual quis usar a palavra, tentar recuperar a palavra, e não torná-la algo com o que nos sentimos tão desconfortáveis em usar", afirmou Kravitz. "Mas ainda não chegamos lá. E, como cineasta, tenho a responsabilidade de ouvir."
OUTRO ALERTA DE SPOILER.
Se Kravitz fosse adiante com seu título original, entregaria de cara o que só pela metade de Pisque Duas Vezes fica claro para o espectador. Até então, a história remete a filmes como O Menu (2022), Triângulo da Tristeza (2022) e Piscina Infinita (2023), sátiras macabras do mundo dos super-ricos. Atriz da cinebiografia I Wanna Dance with Somebody: A História de Whitney Houston (2022), Naomi Ackie interpreta a protagonista, Frida, que sobrevive fazendo tatuagens de unha e trabalhando como garçonete. Durante um evento de gala, ela encontra um bilionário do ramo da tecnologia, Slater King, papel do namorado da diretora, Chaning Tatum — que empresta seu carisma a um personagem pusilânime, cujo nome diz muito: podemos traduzir como "Rei Matador".
Slater está temporariamente afastado do cargo de CEO, cumprindo o script padrão dos figurões que precisam reabilitar sua imagem após algum tipo de escândalo, o que inclui um pedido público de desculpas e um retiro em sua ilha particular. É para lá que ele convida Frida e a amiga dela, Jess (Alia Shawkat, da série The Old Man). As duas já deveriam desconfiar quando a assistente do megaempresário, Stacy (Geena Davis, Oscar de coadjuvante por O Turista Acidental), confisca seus celulares.
MAIS UM ALERTA DE SPOILER.
E poderiam ter percebido as diferenças de gênero, raça e classe social: de um lado, estão homens brancos e ricos, como os personagens encarnados por Christian Slater e Haley Joel Osment; do outro, mulheres negras, como Frida, ou latinas, como Sarah (Adria Arjona, roubando a cena) e Camilla (Liz Caribel), ou de origem árabe, como Jess (Shawkat é filha de pai iraquiano). Mas, inebriadas pelo tsunami de champagne e pelas toras de maconha, seduzidas pelo ambiente de luxo e hedonismo e, principalmente, intoxicadas por um perfume amnésico, elas demoram a se dar conta de que estão lá como meros brinquedos sexuais. Que podem ser descartados se deixam de funcionar.
É um choque, para Frida e para o espectador, quando ela começa a juntar as peças do quebra-cabeças, a exemplo do que ocorre com o personagem de Daniel Kaluuya em Corra! (2017), de Jordan Peele. E é um chamado à raiva e à revanche contra o patriarcado, a misoginia, a masculinidade tóxica e a cultura do estupro, a exemplo do que acontece em Bela Vingança (2020), de Emerald Fennell, e Fresh (2022), de Mimi Cave.
A fúria justificada e a violência catártica não inibem um tanto de humor debochado e um tanto de reflexão amarga. Pela boca de Slater King, Zoë Kravitz profere um discurso doloroso sobre não existir perdão, mas esquecimento (fica mais, digamos, bonito em inglês, pela aliteração entre forgiving e forgetting). Os homens pedem desculpas mil vezes não porque desejam realmente serem perdoados, mas porque querem que as vítimas se esqueçam do trauma. Assim, podem perpetuar o abuso, a agressão, a humilhação.
Isso até surgir uma Frida em seu caminho.