O mundo da gastronomia é, com o perdão do trocadilho, um prato cheio para o cinema.
Por um lado, a arte de cozinhar permite aos diretores conceber espetáculos visuais. Por outro, restaurantes são ambientes propícios para filmes tensos. E a comida e o ato de servir se prestam a metáforas sobre como encaramos a vida e nos relacionamos com as pessoas.
A convite da turma do Destemperados, fiz uma lista com sete títulos para ver em casa — seja nas plataformas de streaming, nos serviços de aluguel digital ou em DVD (não poderia deixar de fora o grande clássico deste subgênero; uma pena que não encontrei o delicioso A Grande Noite, dirigido em 1996 pelos atores Campbell Scott e Stanley Tucci, que também estão no elenco, ao lado de Tony Shalhoub e Isabella Rossellini).
1) A Festa de Babette (1987)
De Gabriel Axel. Vencedor do Oscar internacional, é o epíteto dos filmes sobre gastronomia. A história está ambientada na desolada costa da Dinamarca do século 19. Martina e Philippa são filhas de um devoto pastor protestante que prega a salvação através da renúncia. As irmãs sacrificam suas paixões da juventude em nome da fé. Interpretada por Stéphane Audran, a Babette do título é uma francesa católica que foge da repressão da segunda comuna de Paris. Ela pede abrigo na casa de Martina e Philippa: em troca, trabalha como empregada. Quando as irmãs decidem organizar um jantar para celebrar o centenário de nascimento do já falecido pai, Babette propõe algo ousado: vai preparar um banquete francês. Ex-cozinheira do célebre Café Anglais, restaurante que existiu de verdade de 1802 a 1913, ela encomenda ingredientes desconhecidos na aldeia. O cardápio inclui blinis Demidof (pequenas panquecas), a codorna no sarcófago, a sopa de tartaruga com quenelles de vitela e o babá ao rum. (Foi lançado em DVD pela PlayArte)
2) Chocolate (2000)
De Lasse Hallström. Ambientado em uma pequena cidade da França do final dos anos 1950, acompanha as atividades de uma mulher e de sua filha pequena, que chegam à localidade para abrir uma chocolateria. A comunidade é conservadora, a loja não é vista com bons olhos, mas aos poucos os moradores resolvem provar os poderes mágicos do chocolate. Alguns ficam encantados com a receita que adiciona pimenta, algo exótico à época do lançamento do longa-metragem, que usa o alimento para discutir valores como tradição e tolerância. Recebeu cinco indicações ao Oscar: melhor filme, atriz (Juliette Binoche), atriz coadjuvante (Judi Dench), roteiro adaptado e música original. O elenco conta com Johnny Depp, Carrie-Anne Moss, Alfred Molina e Lena Olin. (Para aluguel em Apple TV e Google Play)
3) Estômago (2007)
De Marcos Jorge. Ganhou cinco troféus no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro: melhor filme, diretor, roteiro, ator coadjuvante (Babu Santana) e escolha do público. Seu protagonista é o baiano João Miguel, no papel do paraibano Raimundo Nonato, que desembarga na cidade de São Paulo com a roupa do corpo e, em busca de abrigo, aceita trabalhar por casa e comida fritando coxinhas em um boteco. Os petiscos caem no gosto dos boêmios que frequentam o local, entre elas a prostituta Iria (Fabiula Nascimento), e logo Raimundo irá progredir na vida. Mas como ele narra sua saga de uma cela de presídio, de partida ficamos sabendo que algo ruim ocorreu pelo caminho.
Marcos Jorge conta duas histórias em paralelo que têm em comum o uso que Nonato faz de suas habilidades culinárias para ascender socialmente. Tanto no emprego que arruma em um restaurante quanto no incremento que promove na gororoba servida aos detentos, o que o faz cair nas graças do chefão do xadrez, Bujiú (Babu Santana), e ganhar regalias. Vale prestar atenção nas receitas e dicas que são mostradas, da coxinha de galinha ao espaguete à putanesca, da origem do queijo gorgonzola ao emprego da angustura para dar sabor a drinques. (Netflix e canal Telecine do Amazon Prime Video e do Globoplay)
4) Julie & Julia (2009)
De Nora Ephron. O filme da roteirista de Harry e Sally: Feitos um para o Outro (1989) e diretora de Sintonia de Amor (1993) e Mensagem para Você (1998) é inspirado no blog de Julie Powell (interpretada na ficção por Amy Adams). Insatisfeita com seu trabalho em um call center, a jovem impôs-se o desafio de preparar as 524 receitas de pratos franceses do célebre livro da chef Julia Child (1912-2004) em 365 dias, relatando a experiência em seu diário na internet. A trama reconstitui em paralelo as duas histórias, que são separadas por quase cinco décadas. Ao mesmo tempo em que conta como a grandalhona, espontânea e desajeitada Julia (Meryl Streep, merecidamente indicada ao Oscar de melhor atriz) resolve aproveitar a estadia em Paris no final dos anos 1950, acompanhando o marido diplomata (Stanley Tucci), para mergulhar nos segredos da culinária da França, Julie & Julia relata a maratona na atualidade de Julie, pilotando o fogão e o computador para dar conta da empreitada. Entre as delícias mostradas, estão o icônico boeuf bourguignon e o Rainha de Sabá, um bolo de chocolate e amêndoas. (Paramount+ e para aluguel em Google Play e YouTube)
5) O Chef (2021)
De Philip Barantini. Aqui não é exatamente a comida a estrela, mas o ambiente de um restaurante, quase sempre fervente — daí o título original, Boiling Point (ponto de ebulição). O filme foi feito em um único plano-sequência, ou seja, não tem cortes, traduzindo a rotina de uma cozinha: ninguém pode parar, todos precisam estar sempre em movimento, porque o tempo corre contra. O ator Stephen Graham brilha no papel de Andy Jones, chef de uma sofisticada casa que acaba de ser rebaixada, de cinco estrelas para três, em uma inspeção de saúde e segurança. Simultaneamente, a gerente está preocupada com o excesso de reservas para o jantar, que inclui a de um badalado crítico gastronômico (Jason Flemyng) e uma mesa na qual haverá um pedido de casamento. À medida que a noite avança, as tensões aumentam, tanto entre as panelas quanto no salão. (Para aluguel em Amazon Prime Video e Google Play)
6) O Menu (2022)
De Mark Mylod. No filme assinado por um dos diretores da série Sucession, um jovem casal (Anya Taylor-Joy e Nicholas Hoult) viaja a uma ilha remota para um jantar exclusivo — e caríssimo — preparado pela equipe do renomado e rigoroso chef Julian Slowik (Ralph Fiennes). Convém não falar muito sobre a trama, que mescla comédia e terror, mas dá para dizer que cada prato servido no restaurante Hawthorn tem um significado por trás dele. Slowik também tece comentários sobre a própria indústria gastronômica e sobre os seus abastados clientes. O primeiro, por exemplo, funciona como uma metáfora da natureza fugaz da vida humana. Mais adiante, outro vai explorar a insegurança masculina. O cardápio inclui o "prato de pão sem pão" e os tacos de frango com tesoura dentro. (Star+)
7) Fome de Sucesso (2023)
De Sittisiri Mongkolsiri. O filme tailandês serve um prato requentado e demorado (são 145 minutos de duração), mas nutritivo e bonito — se a comida daquele país asiático já é apetitosa por si só, imagine quando realçada por técnicas cinematográficas como a direção de fotografia, a câmera lenta e a montagem. Na trama, a jovem e talentosa Aoy (Chutimon Chuengcharoensukying), que cuida do restaurante de bairro de sua família, é convidada para trabalhar na equipe do prestigiado chef Paul (Nopachai Chaiyanam), que comanda sua cozinha com mão de ferro e conduz banquetes privados para generais, milionários e artistas. Será um choque não apenas entre dois mundos, mas entre dois modos de ver o ato de cozinhar: Aoy faz isso com amor, preparando pratos como o Macarrão Manhoso, e Paul, por motivos negativos. (Netflix)