Os frequentes casos de negros mortos por policiais brancos nos Estados Unidos, como Andre Hill, Breonna Taylor e George Floyd, em 2020, e Daunte Wright, em 2021, e os subsequentes debates sobre racismo estrutural deixam sempre em evidência Corra! (Get Out, 2017), filme de Jordan Peele que a RBS TV exibe neste domingo (1º), às 23h25min, no Domingo Maior.
Eleito pelo Sindicato dos Roteiristas dos EUA, em dezembro do ano passado, como o melhor roteiro do século 21 — à frente de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), A Rede Social (2010), Parasita (2019) e Onde os Fracos Não Têm Vez (2007) —, Corra! transformou Peele, hoje com 43 anos, em um dos nomes mais badalados do entretenimento estadunidense. Até então mais associado a seriados humorísticos, como MadTV (2003-2008) e Key and Peele (2012-2015), ele enveredou pelo terror em sua estreia como diretor. Mas não deixou a ironia de lado, o que explica a estranha indicação de Corra! ao Globo de Ouro de melhor comédia ou musical.
A consagração viria no Oscar, quando Peele concorreu em três categorias: melhor filme (como um dos produtores), diretor e roteiro original. Tornou-se o primeiro cineasta negro a ganhar nessa última categoria, na qual apenas três haviam concorrido antes: Suzanne de Passe, por O Ocaso de uma Estrela (1972), Spike Lee, por Faça a Coisa Certa (1989), e John Singleton, por Os Donos da Rua (1991). Na de script adaptado, a Academia de Hollywood já premiou quatro vezes autores afro-americanos: Geoffrey Fletcher (Preciosa, de 2009), John Ridley (12 Anos de Escravidão, 2013), Barry Jenkins e Tarell Alvin McCraney (Moonlight, 2016) e Spike Lee e Kevin Willmott (Infiltrado na Klan, 2018).
Sucesso de crítica (tem 98% de avaliações positivas no Rotten Tomatoes e nota 85 no Metacritic), o filme também foi bem de público. Arrecadou US$ 255 milhões, quase 60 vezes o seu custo de produção.
Os números e as láureas, que incluem a presença de Corra! na lista dos 10 melhores filmes de 2017 segundo o American Film Institute e a do diretor no ranking da revista Time com as cem pessoas mais influentes do mundo, sinalizaram a Peele que ele tomara um caminho certo — e aparentemente sem volta — ao pegar a estrada do terror. Manteve na bagagem uma certa comicidade permeada de comentários sobre a cultura pop. Mas o que chama a atenção em sua obra é o tom sinistro e por vezes bizarro com o qual passou a discutir a perpetuação da escravidão, o racismo estrutural, a normalização da agressão, as tentativas da sociedade estadunidense de apagar e reinterpretar o próprio passado de exploração e violência (vide o Massacre de Tulsa, reencenado na minissérie Watchmen), o preconceito disfarçado sob o mito de que na esfera cultural da atualidade os negros têm algum tipo de vantagem, a diferença brutal entre brancos e negros nas estatísticas policiais — por exemplo: os últimos representam 13% da população nos Estados Unidos, mas são 34% dos desaparecidos. É como se o número gritasse: "Vidas negras não importam".
Em Corra!, Daniel Kaluuya (indicado ao Oscar de melhor ator pelo filme do Domingo Maior e ganhador da estatueta de coadjuvante por Judas e o Messias Negro) interpreta um fotógrafo negro que vai visitar a família da namorada, uma jovem branca vivida por Allison Williams (a protagonista de The Perfection). Na propriedade rural dos Armitage (Bradley Whitford e Catherine Keener), ele começa a ficar intrigado com estranhos acontecimentos e comportamentos. Mais não dá para contar, para não tirar o espanto.
No filme seguinte de Peele, Nós (2019) — cujo título original, Us, também pode ser lido como a abreviação de United States (Estados Unidos) —, uma família negra que viaja para uma casa de veraneio passa a ser fustigada pela chegada de um grupo misterioso. Muitos críticos lamentaram a ausência da protagonista, Lupita Nyong'o, da lista de indicadas ao Oscar de melhor atriz. O elenco também traz Winston Duke (de Pantera Negra e Nove Dias), Yayha Abdul-Mateen II (de Watchmen e Os 7 de Chicago) e Elisabeth Moss (de The Handmaid's Tale e O Homem Invisível).
Peele estendeu seus braços para a TV e o streaming. Em 2019, desenvolveu para a CBS uma nova versão do seriado The Twilight Zone, o Além da Imaginação, cujas duas primeiras temporadas podem ser vistas no Amazon Prime Video. Há pelo menos um episódio antológico, Rewind (Rebobinar), escrito por Selwyn Seyfu Hinds e dirigido por Gerard McMurray. Trata-se de uma sombria ficção científica sobre uma mãe e seu jovem filho, um calouro a caminho da faculdade, que param em uma lanchonete de estrada, onde ela descobre que sua câmera de vídeo tem o poder de voltar no tempo e onde os dois passam a ser molestados por um policial racista.
Em 2020, foi um dos produtores executivos do seriado Lovecraft Country, da HBO Max, que mistura os contos sobrenaturais de H.P. Lovecraft (1890-1937) à evidente veia racista do escritor americano. A trama criada por Misha Green se passa na década de 1950. Atticus Freeman (Jonathan Majors, o filho de Delroy Lindo em Destacamento Blood) se junta a sua amiga Letitia (Jurnee Smollett, a Canário Negro de Arlequina: Aves de Rapina) e seu tio George (Courtney B. Vance) em uma viagem em busca de seu pai desaparecido no sul do país sob forte segregação racial.
Em 2021, Peele coescreveu o roteiro de A Lenda de Candyman, filme de terror da diretora Nia DaCosta que recria O Mistério de Candyman (1992), agora enfatizando a violência contra os corpos negros e também falando sobre gentrificação em Chicago.
Em julho de 2022, vai lançar seu terceiro longa-metragem, Nope, batizado no Brasil como Não! Não Olhe! e estrelado por Daniel Kaluuya, Keke Palmer e Steven Yeun. A trama se passa em um lugarejo da Califórnia, onde os moradores testemunham o que pode ser uma invasão alienígena.