Em Corra! (2017), Jordan Peele misturou gêneros como o terror e a ficção científica para falar de assombrações que rondam a sociedade – o racismo e o mau uso da tecnologia entre elas. Em seu aguardado segundo longa-metragem, Nós (2019), o diretor e roteirista aposta nos códigos do suspense para contar uma história de fantasmas interiores – que, no entanto, dizem muito sobre a conjuntura social atual.
Nós estreia nesta semana no circuito pouco depois das badaladas primeiras sessões nos EUA, onde Peele chegou a ser chamado de “novo Hitchcock”. À parte os exageros, o filme instiga de modo semelhante ao de Os Pássaros (1963), o clássico thriller hitchcockiano sobre paranoia no qual a protagonista se vê obrigada a fugir sem entender a razão de estar sendo perseguida. Nós é uma espécie de encontro de Os Pássaros com Violência Gratuita (de Michael Haneke, 1997): mostra o tormento de um pai, uma mãe e seus dois filhos, que vão passar uns dias em sua residência de verão, na Califórnia, e acabam sendo perseguidos e depois torturados, dentro de casa, por duplos deles próprios – pessoas que têm aparências semelhantes (são interpretadas pelos mesmos atores), constituindo versões sinistras deles quatro.
Um prólogo da narrativa indica a origem de tudo. Nele, estamos em 1986 e vemos uma menina se perdendo dos pais em um parque de diversões à beira-mar. A trama em si se passa na atualidade, quando a criança cresceu e se transformou naquela mãe (interpretada por Lupita Nyong’o). Sua perturbação ao voltar à mesma praia de seu trauma de infância é escancarada por flashbacks repetitivos, que parecem querer entregar tudo de modo mastigado ao espectador. Mesmo as piadas do marido da protagonista (Winston Duke) são tão didáticas que soam fora de tom, transformando o alívio cômico, tão bem empregado em Corra!, em um obstáculo à fluidez da fruição.
O terror até então sugerido se materializa quando, após um dia típico de férias, pontuado pela diversão do pai e dos dois filhos (vividos por Evan Alex e Shahadi Wright Joseph) e pelo desconforto da mulher, a noite cai e falta luz. Logo em seguida, aproveitando-se da escuridão, quatro invasores vestidos de vermelho, meio gente, meio robôs, como se fossem recriações tecnológicas do quarteto, aparecem à frente da propriedade. E começam a aterrorizá-los.
Muitos elementos de Nós, do figurino à escolha dos atores, contêm algum significado. Há uma família de amigos dos protagonistas, formada por um casal fútil interpretado por Tim Heidecker e Elisabeth Moss, da série de TV The Handmaid’s Tale – distopia referenciada nos macacões usados pelos vilões. Também há um barco, que o personagem de Winston Duke adquire para passear no lago junto à casa – e que, emulando clássicos do suspense, transforma-se em palco de uma luta entre o homem e seu duplo amedrontador. Os raps ouvidos no carro e na casa dessa família de amigos igualmente não estão ali por acaso: não sem alguma leveza, problematizam questões de vocabulário e representatividade, passando pela violência do Estado, questões essas que são candentes quando se pensa a família formada por negros como instituição na contemporaneidade.
Os corpos – com suas peles negras, é importante sublinhar – são o “lugar” do terror. Não porque aprisionam a alma, clichê de abordagens religiosas desse tema, mas porque, ao contrário disso, são capazes de libertar. De permitir que a vida seja plena. Sem eles, não seríamos nada além dos nossos fantasmas, parece afirmar Peele. Vem daí uma interpretação possível para a invasão desses fantasmas robóticos: eles estão condenados às limitações da ausência do corpo, o que gera recalque e, a partir disso, vontade de violência.
Mas essa é só uma das interpretações possíveis – bastante referenciada em David Cronenberg, uma das mais notáveis influências do diretor que é uma das maiores revelações recentes em Hollywood. Nós é complexo e fértil na capacidade de provocar reflexões sobre o contexto em que se insere. E ainda trabalha com viradas de roteiro – particularmente uma, ao final – capazes de fazer os fãs do gênero vibrarem.
NÓS
(Us)
De Jordan Peele.
Suspense, EUA, 2019, 116min, 14 anos.
Em cartaz no circuito de cinemas.