Vamos tirar logo do caminho aquela parte mais parecida com uma resenha: Pantera Negra vinha ganhando atenção pela sua importância cultural, mas ele tem seus próprios méritos para figurar entre os grandes filmes da editora. O elenco está todo bem, o desenho de produção é grandioso, parte da ação é muito bem coreografada (e a parte que não é deve seus tropeços mais à computação gráfica). O país fictício de Wakanda é construído em tintas ricas e complexas, e o grande vilão, Erik Killmonger, mais do que uma figura carismática, talvez seja o primeiro antagonista da Marvel a de fato ter um ponto a ser levado em consideração.
Pantera Negra narra a história de T’Challa, herdeiro do trono de Wakanda, que precisa assumir a responsabilidade régia após a morte de seu pai em um atentado (mostrado em Capitão América: Guerra Civil). Mas ele também terá de lidar com Ulysses Klaue (Andy Serkis), um criminoso sul-africano responsável por um atentado em Wakanda 25 anos antes.
A caçada a Klaue (que apareceu pela primeira vez em Os Vingadores: a Era de Ultron) vai levar T’Challa a se defrontar com Killmonger, wakandiano de origem, mas criado nos EUA e com um discurso radical de revolução armada usando a tecnologia ultradesenvolvida do país africano. E é nessa oposição que está a chave de um dos elementos mais característicos do filme (e que o torna uma raridade no panorama dos filmes de super-heróis): a política.
Falar em política em um filme de super-heróis parece um exagero ou uma bobagem, e na maior parte do tempo é isso mesmo. Mas neste aqui a situação é um pouco diversa. Pantera Negra é inédito nos blockbusters de heróis, mas não pelos motivos que se poderia imaginar. Este não é o primeiro filme de grande orçamento protagonizado por um super-herói negro (há uma década, por exemplo, tivemos a comédia irregular Hancock, com Will Smith). Não é nem o primeiro filme solo de um personagem negro na Marvel (muitos podem não saber, mas esse foi Blade, há 20 anos, abrindo caminho para a atual era dos super-heróis no cinema). Pantera Negra, no entanto, é produzido com uma escala e um contexto muito diferentes.
Blade era uma produção modesta quando ninguém estava muito interessado em filmes de quadrinhos. E Hancock era uma sátira "de fora" em que o personagem era mais problemático do que virtuoso. Aqui, o Pantera é um personagem relevante incluído no quadro maior de um universo cinematográfico em plena expansão. Em um momento em que lutas por representatividade sacodem as certezas até aqui alienadas da cultura pop exigindo personagens com maior diversidade mesmo em produções escapistas.
Tanto o diretor Ryan Coogler quanto o elenco majoritariamente negro (e que inclui boas atuações de Lupita Nyong’O, Letitia Wright, Daniel Kaluuya e Danai Gurira) parecem saber disso. Por isso, um dos elementos mais fortes do filme é a oposição entre exclusão e pertencimento. T’Challa aprende seu caminho, entre outras coisas, pelo confronto com a tradição. O Pantera é, nesse sentido, um raro personagem da Marvel no cinema a não surgir como uma anomalia, mas sim filiado a uma longa sequência de antecessores (praticamente todos os reis de Wakanda foram o "Pantera Negra" antes dele). Ao mesmo tempo, o que moldou Killmonger foi um gesto de exclusão, o que torna sua luta mais humana e compreensível do que o habitual plano de destruição mundial da maioria dos supervilões.
Talvez por isso o filme tenha apresentado tamanho resultado comercial até agora. Em seu primeiro fim de semana em cartaz, arrecadou a quinta maior bilheteria de estreia de todos os tempos nos Estados Unidos: US$ 192 milhões. É também a maior estreia de um filme da Marvel desde o aclamado Vingadores. E a forma como o filme trata a oposição entre ambos, T'Challa e Killmonger, é ambígua e sutil o bastante para oferecer elementos para amplos debates.
Num filme de herói, quem diria?