— Todos os jurados ficaram extremamente chocados com este filme — disse o ator francês Vincent Lindon, presidente do júri no 75º Festival de Cannes, em 2022, que concedeu a Palma de Ouro a Triângulo da Tristeza, longa-metragem do sueco Ruben Östlund com três indicações ao Oscar que acaba de chegar ao Amazon Prime Video.
Lindon tem cacife para falar de choque. Em 2021, estava no elenco de Titane, obra da cineasta francesa Julia Ducournau sobre uma assassina que faz sexo com um carro Cadillac e engravida (o óleo preto que escorrerá de sua vagina e de seu seio não deixa dúvida sobre a paternidade do bebê por vir), também premiada com a Palma de Ouro.
Mas talvez náusea, e não espanto, seja a reação do espectador diante da cena mais falada de Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness, 2022), uma mistura de sátira do mundo da moda, crítica aos muito ricos e jogo de sobrevivência em uma ilha deserta que, além de disputar as categorias de melhor filme, direção e roteiro original no Oscar, inscreveu o nome de Östlund em um seleto clube: o dos cineastas que conseguiram conquistar duas vezes o Festival de Cannes. O sueco está ao lado, agora, de Francis Ford Coppola, Bille August, Emir Kusturica, Michael Haneke, Ken Loach, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, Shohei Imamura e Alf Sjöberg.
A primeira vitória foi em 2017, por The Square: A Arte da Discórdia, que concorreu ao Oscar de melhor filme internacional. Na trama, a vida de um refinado curador de museu em Estocolmo sai dos trilhos após ter seu celular furtado e aprovar uma campanha de marketing sem noção destinada a viralizar nas redes. A crítica ao mundo da arte mescla-se a uma discussão sobre a desigualdade social na Europa contemporânea.
Antes, em 2014, Östlund recebeu o Prêmio do Júri na mostra Um Certo Olhar, por Força Maior, que acompanha uma família sueca em férias nos Alpes Franceses. Diante da ameaça de uma avalancha, o pai deixa a mulher e os dois filhos para trás. Passado o perigo, ela o questiona sobre o gesto covarde, abrindo uma crescente tensão no relacionamento.
As três partes de "Triângulo da Tristeza"
Triângulo da Tristeza está dividido em três partes. Na primeira, conhecemos um casal de modelos: Carl, interpretado pelo inglês Harris Dickinson, e Yaya, encarnada pela sul-africana Charlbi Dean, que morreu em agosto de 2022, aos 32 anos, vítima de sepse bacteriana. Por meio desses personagens, o filme aborda, entre outros assuntos, a cultura fashion ("As marcas baratas são as mais simpáticas, e quanto mais cara a marca, mais despreza o consumidor", diz um repórter nos bastidores de um teste), o uso da beleza como moeda e a hipocrisia de homens e mulheres supostamente bem resolvidos com a questão da igualdade de gênero — são antológicos os diálogos de Carl e Yaya à mesa de um restaurante caro e depois, num quarto de hotel.
Na segunda parte, os dois jovens embarcam em um iate de luxo que tem um capitão marxista (papel do estadunidense Woody Harrelson) e traz, entre os demais personagens, um magnata russo da indústria de fertilizantes, Dmitri (encarnado pelo croata Zlatko Buric), e um casal de velhinhos ingleses que ficou rico vendendo armas e bombas (Amanda Walker e Oliver Ford Davies).
Por fim, passageiros e tripulantes vão parar numa ilha deserta, onde as relações de poder se invertem. Quem está no comando da situação é uma empregada da limpeza, Abigail (a filipina Dolly De Leon, indicada ao Bafta de atriz coadjuvante), pois é a única que sabe pescar e acender o fogo, por exemplo.
A cena supostamente chocante de Triângulo da Tristeza ocorre no iate de luxo. Trata-se de uma sequência, com cerca de 15 minutos de duração, em que os passageiros vomitam e defecam sem parar, enquanto o Capitão e Dmitri debatem verborragicamente sobre capitalismo e comunismo. Os jorros pela boca são como os disparos de uma metralhadora giratória, a diarreia transborda e transforma o cenário em um lamaçal.
O mau gosto é absolutamente proposital, ainda que o tempo despendido seja excessivo (como em todo o filme, que dura duas horas e 27 minutos por se alongar demais em algumas passagens, repetindo suas piadas e seu discurso). Triângulo da Tristeza quer mostrar a sujeira e a podridão que há por dentro de uma elite cada vez mais alienada e egoísta. Lança mão da comédia escatológica para dizer o que é dito de modo mais sofisticado e irônico em séries como Succession e The White Lotus.
— Eu sempre fui um socialista, então acho que de repente estou na moda de novo, e isso é fantástico! — afirmou Östlund em entrevista ao site australiano Concrete Playground. — Quando eu estava fazendo meus primeiros longas-metragens, eu era mais como um diretor de filmes de arte, fui um pouco sutil com meus conceitos, não ia direto ao que queria contar. Quanto mais livre me tornei como diretor, também ousei ser mais direto. Mas acho importante ressaltar que não tenho nada contra os ricos. Pessoas ricas são legais. Elas simplesmente não gostam de pagar impostos!