O Quarto ao Lado (The Room Next Door, 2024) é um marco duplo na carreira do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Trata-se de seu primeiro longa-metragem falado em inglês, após a experiência nos curtas A Voz Humana (2020) e Estranha Forma de Vida (2023), e conquistou pela primeira vez para seu país o Leão de Ouro no Festival de Veneza. A estatueta se soma a outras distinções importantes, como o Oscar, o Globo de Ouro e o Bafta de filme internacional por Tudo sobre Minha Mãe (1999), que também rendeu a escolha como melhor diretor no Festival de Cannes, e a vitória de Fale com Ela (2002) na categoria de roteiro original da premiação da Academia de Hollywood.
Em cartaz a partir desta quinta-feira (24) nos cinemas, O Quarto ao Lado é uma livre adaptação do romance O que Você Está Enfrentando (2020), da escritora estadunidense Sigrid Nunez, lançado no Brasil pela editora Instante. A história está ambientada em Nova York, onde Almodóvar retoma características de sua filmografia: as personagens femininas fortes; a defesa da liberdade de escolha; a celebração do vínculo emocional entre as pessoas e do sexo como um escudo, como um antídoto; o gosto pelo melodrama (mas temperado por um senso de humor ora ácido, ora amargo); a crítica à Igreja Católica; o emprego de cores quentes, como o vermelho e o amarelo; a trilha sonora que realça a gravidade das situações; o fetiche cinematográfico (suas obras estão cheias de citações, incorporam cenas de outros títulos, retratam atores ou diretores).
Mas há diferenças importantes, ainda que algumas já viessem sendo ensaiadas, como no semiautobiográfico Dor e Glória (2019). Cenários e figurinos abrem espaço ao verde, uma cor fria, sinalizando para o tom mais introspectivo. A trama não é nada labiríntica, vai direto ao ponto: a finitude da vida e a iminência da morte, temas que se tornaram mais caros para Almodóvar depois de virar septuagenário (está com 75 anos).
Logo na primeira cena de O Quarto ao Lado, desenha-se o conflito dramático. Interpretada por Julianne Moore, Ingrid é uma autora de sucesso que acabou de escrever um livro para tentar lidar com o seu medo da morte. Durante a sessão de autógrafos, uma antiga conhecida lhe dá uma triste notícia: outra velha amiga, a jornalista de guerra Martha (Tilda Swinton), está internada com um câncer cervical em estágio terminal. Não dá mais para operar, só resta participar de um tratamento experimental.
— Vivo entre a euforia e a depressão. A sobrevivência é quase decepcionante — admite Martha ao receber a visita de Ingrid no hospital.
O drama reaproxima as duas personagens, que passam a entabular longos diálogos, alguns deles ilustrados por flashbacks da juventude de Martha e de suas coberturas jornalísticas. Ela faz o balanço de sua vida porque já não a aguenta mais a tortura das falsas esperanças. A autopiedade não lhe cai bem, nem é estoica para suportar as dores excruciantes:
— Meu corpo vai continuar lutando enquanto eu sofro, sofro e sofro até o último suspiro?
É a deixa para Almodóvar abordar o tabu da eutanásia e do suicídio assistido, que envolve questões filosóficas, éticas e religiosas. No primeiro caso, uma equipe médica administra a dose fatal; no segundo, apenas fornece medicamentos para o procedimento, que é realizado pelo próprio paciente. Poucos países já legalizaram um ou os dois métodos.
Por coincidência, O Quarto ao Lado estreia no Brasil poucos dias depois de o médico mais famoso do país, Drauzio Varella, advogar pelo direito à eutanásia. Em coluna publicada em Zero Hora, escreveu: "O código penal precisa atender às mudanças ocorridas nas sociedades modernas. Eu não quero de jeito nenhum vegetar num leito, sujeito à imprevisibilidade da visita da senhora com a foice, porque ela poderá me encontrar em condições indignas que ficarão gravadas para sempre na memória das pessoas que mais amo. (...) Enquanto tenho pleno domínio de minhas faculdades mentais, as leis devem me assegurar o direito de registrar em cartório as condições em que minha morte deve ser antecipada, por meios farmacológicos. É um tema controverso, mas a sociedade precisa enfrentá-lo".
No debate encenado por Pedro Almodóvar, a personagem de Tilda Swinton está resoluta, mas tem de lidar com seu medo, sua ansiedade, a possibilidade de arrependimento e um luto pelas coisas boas da vida — aí incluídos o sexo e os prazeres proporcionados pela literatura e pelo cinema (uma referência recorrente é o conto Os Mortos, de James Joyce, e sua adaptação cinematográfica pelo diretor John Huston, Os Vivos e os Mortos). Também precisa encontrar um jeito de não incriminar a escritora encarnada por Julianne Moore, de não criar problemas com a polícia e com a Justiça para a amiga com quem vai dividir os últimos dias. No quarto ao lado do título do filme, Ingrid deve acomodar as suas convicções e emoções diante da dor sofrida por Martha.
— Me sinto muito próximo da personagem de Julianne: não consigo compreender que algo que está vivo tem que morrer. A morte está por todo lado, mas é algo que nunca compreendi bem. O filme fala de uma mulher que morre em um mundo que provavelmente também está agonizando — disse, durante o Festival de Veneza, Almodóvar, que, por meio do personagem interpretado por John Turturro, o intelectual Damian, acrescenta à discussão um alerta sobre as mudanças climáticas, o neoliberalismo e a ascensão da extrema-direita. — Mas não é um filme sobre a morte: é sobre a vida. Sobre a liberdade de decidir qual tipo de vida queremos ter. Até o final.
Almodóvar no Oscar
Bem cotado nas categorias de melhor atriz (Tilda Swinton), roteiro adaptado (pelo próprio diretor, a partir do livro de Sigrid Nunez) e música original (de Alberto Iglesias), O Quarto ao Lado pode ser o sétimo filme de Pedro Almodóvar indicado ao prêmio da Academia de Hollywood. Confira os anteriores:
Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988): foi indicado ao troféu de filme internacional
Tudo Sobre Minha Mãe (1999): ganhou o Oscar de filme internacional
Fale com Ela (2002): Almodóvar venceu na categoria de melhor roteiro original e concorreu na de melhor direção
Volver (2006): Penélope Cruz concorreu como melhor atriz
Dor e Glória (2019): disputou o prêmio de melhor ator (Antonio Banderas) e o de filme internacional
Mães Paralelas (2021): indicado em melhor atriz (Penélope Cruz) e música original (Alberto Iglesias)
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