Se o mundo fosse justo, a Apple TV+ não amargaria o baixíssimo número de assinantes entre as plataformas de streaming. Seus seriados e suas minisséries mereciam mais ibope, afinal, a lista inclui obras como Acima de Qualquer Suspeita, Black Bird, For All Mankind, The Morning Show, Pachinko, Ruptura, Slow Horses e Ted Lasso (talvez o único grande sucesso de público). Na média, suas produções são mais atraentes e melhores do que as ofertas da Netflix, do Amazon Prime Video e do Disney+. E chegam a rivalizar com a Max no chamado entretenimento adulto.
Como o mundo não é justo, convém chamar a atenção para Disclaimer (2024), mesmo que os nomes da direção e do elenco sejam suficientes para garantir alguma visibilidade a essa minissérie lançada na sexta-feira (11). Já estão disponíveis dois de seus sete episódios, e mais dois irão ao ar nesta sexta (18). Os capítulos 5, 6 e 7 estreiam respectivamente nos dias 25/10, 1º/11 e 8/11.
Em alguns sites, você verá a minissérie identificada como Difamação, título brasileiro do livro da escritora inglesa Renée Knight adaptado pelo cineasta mexicano Alfonso Cuarón. Mas a Apple TV+ adotou no Brasil o nome original. Disclaimer é o termo que designa as declarações de isenção de responsabilidade, uma proteção contra possíveis problemas legais, como aqueles avisos nas primeiras páginas de um romance: "Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência".
Trata-se da primeira série inteiramente realizada por Cuarón, ganhador do Oscar de melhor direção por Gravidade (2013), que também valeu a ele a estatueta de edição, e por Roma (2018), também laureado na categoria de filme internacional. Seu currículo inclui E sua Mãe Também (2001), Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2004) e Filhos da Esperança (2006). Na equipe técnica, ele cercou-se de alguns profissionais oscarizados ou indicados à premiação da Academia de Hollywood: seu compatriota Emmanuel Lubezki e o francês Bruno Delbonnel assinam a fotografia, e a música foi composta pelo estadunidense Finneas O'Connell, irmão de Billie Eilish e parceiro da cantora nas vencedoras canções No Time to Die (de 007: Sem Tempo para Morrer) e What I Was Made For? (de Barbie).
O elenco reúne um time de notáveis. A australiana Cate Blanchett ganhou duas vezes o Oscar, primeiro como coadjuvante, por O Aviador (2004), depois como melhor atriz, por Blue Jasmine (2013), e foi indicada mais seis vezes. Também australiano, Kodi Smit-McPhee competiu como ator coadjuvante por Ataque dos Cães (2021). Nessa categoria, o estadunidense Kevin Kline recebeu a estatueta dourada por Um Peixe Chamado Wanda (1988). O britânico Sacha Baron Cohen concorreu como coadjuvante por Os 7 de Chicago (2020) e disputou os prêmios de roteiro pelos dois filmes do Borat (2006 e 2020). A também britânica Lesley Manville teve uma indicação como coadjuvante por Trama Fantasma (2017).
A trama de Disclaimer é perfeita para quem curte histórias sobre segredos de família, com mistérios mórbidos a desvendar e um vaivém entre o presente e o passado. A forma também seduz: Alfonso Cuarón intercala três pontos de vista, talvez nenhum deles absolutamente confiável, como a ilustrar o quão podem ser fabricadas, ou seja, não exatamente reais, as histórias que contamos sobre nós mesmos e aqueles que amamos. Pode-se enquadrar a produção da Apple TV+ em uma recente espécie de subgênero que inclui a minissérie The Undoing (2020) e o filme Anatomia de uma Queda (2023), dedicado a discutir a tênue — se é que existente — diferença entre verdade e percepção ao mesmo tempo em que encena um apocalipse particular.
A minissérie começa com uma quente cena de sexo juvenil durante uma viagem de trem em direção à Itália. Logo depois, assistimos à jornalista e apresentadora de TV Christiane Amanpour (encarnada por ela mesma) entregar um prêmio para a personagem da sempre talentosa Cate Blanchett, a documentarista Catherine Ravenscroft, que construiu sua reputação ao trazer à tona os erros e as transgressões de governos, empresas e pessoas proeminentes. É uma mulher de sucesso, que mora em um luxuoso apartamento duplex de Londres com o amoroso marido, Robert (Sacha Baron Cohen), que administra fundos financeiros, e com quem tem um filho de 20 e poucos anos, Nicholas (Kodi Smit-McPhee), que definitivamente ficou aquém das expectativas dos pais — trabalha como vendedor em uma loja de eletrodomésticos.
Em seguida, surge Kevin Kline, simultaneamente adorável e assombroso no papel de Stephen Brigstocke, um professor veterano que perdeu recentemente a esposa, Nancy (Lesley Manville), e que é demitido ou forçado a se aposentar por causa da sua intransigência em relação a um aluno. A narrativa é pontuada por uma voz (da atriz Indira Varma) que, falando na segunda pessoa, faz revelações íntimas e tece comentários morais.
Gradativamente, Cuarón apresenta as peças de seu tabuleiro. Ao voltar da festa de sua premiação, Catherine encontra em casa um pacote contendo um romance chamado The Perfect Stranger (O Estranho Perfeito). O disclaimer é subversivo e alarmante: "Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas não é coincidência". Ao ler, a protagonista fica chocada ao perceber que a história expõe um episódio nefasto do passado dela. Não demora a sabermos que o livro foi enviado por Stephen e a entendermos como Jonathan (Louis Partridge), o rapaz visto transando na abertura da minissérie, se conecta a esses dois personagens.
Falar mais sobre a trama é desnecessário e prejudicial. Não à toa, a Apple TV+ solicitou aos jornalistas que evitem spoilers. Vale, contudo, reproduzir o alerta dado por Christiane Amanpour em seu discurso: "Cuidado com a narrativa e a forma. Seu poder pode nos aproximar da verdade, mas elas também podes ser usadas como uma grande arma de manipulação". Ao longo dos sete episódios, deveremos descobrir qual dos personagens está contando a, digamos, verdade, quem está mais iludido com a narrativa em que resolveu acreditar e o que o próprio Alfonso Cuarón está escondendo de nós.
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