Às vésperas das eleições que podem reconduzir Donald Trump, 78 anos, à presidência dos Estados Unidos, chega aos cinemas brasileiros o filme que retrata a sua ascensão como empresário do setor imobiliário e magnata midiático, nas décadas de 1970 e 1980. Trata-se de O Aprendiz (The Apprentice, 2024), dirigido pelo iraniano-dinamarquês Ali Abbasi, realizador de Border (2018) e Holy Spider (2022), e protagonizado pelo romeno-estadunidense Sebastian Stan, conhecido como o Soldado Invernal do Universo Marvel e indicado ao Emmy pela minissérie Pam & Tommy (2022). A estreia é nesta quinta-feira (17).
É um baita filme. Seu primeiro acerto é não tentar acomodar em duas horas toda a trajetória do biografado — faz um recorte no tempo, preciso e emblemático: conseguimos compreender como Donald Trump transformou-se na figura de hoje, tão poderosa e temida quanto alvo da ridicularização por causa de suas idiossincrasias políticas e de suas extravagâncias pessoais.
Podemos enquadrar em uma tendência de Hollywood — a dos prólogos de histórias e personagens célebres — o roteiro escrito pelo jornalista Gabriel Sherman, autor do livro que originou a minissérie A Voz Mais Forte: O Escândalo de Roger Ailes (2020), sobre o presidente da emissora Fox News que caiu após acusações de assédio sexual. O título não é só uma referência ao homônimo reality show do mundo dos negócios que o candidato do Partido Republicano comandou por 14 temporadas, desde 2004 até começar sua campanha para assumir a Casa Branca, façanha conquistada no pleito de 2016, quando derrotou Hillary Clinton, dos Democratas. Na primeira parte da trama, o jovem Donald Trump ainda é, de fato um aprendiz. Seu mentor é Roy Cohn (1927-1986), apontado pela revista Esquire como "o advogado mais duro, cruel, leal, vil e brilhante da América". Ele ganhou fama em 1951 por, à base de acusações alarmistas, discursos patrióticos e manipulações de provas e depoimentos, ter trabalhado para condenar à cadeira elétrica o casal judeu Julius e Ethel Rosenberg, executados por espionagem — os dois teriam transmitido informações sobre a bomba atômica para a União Soviética.
Além de comunistas, Cohn também perseguia homossexuais, o que torna sua figura ainda mais controversa: ele próprio era gay, embora nunca tenha admitido, e morreu em decorrência da aids, mas sempre negou ser soropositivo. Sabia os podres de políticos, empresários, cardeais, celebridades, mafiosos e presidentes de clubes esportivos, aos quais chantageava ou prestava serviços sem cobrar: seu grande poder era que pessoas importantes lhe devessem favores. Não à toa, virou personagem recorrente no cinema e na TV, seja em documentários, como Bully. Coward. Victim: The Story of Roy Cohn (2019, disponível no Max), dirigido por Ivy Meeropol, neta dos Rosenberg, ou na ficção. Foi interpretado por James Woods no telefilme Cidadão Cohn (1992), por Al Pacino na minissérie Angels in America (2003, também no Max) e, agora, por Jeremy Strong, ganhador do Emmy de melhor ator em 2020 pela primeira temporada da série Succession.
Em O Aprendiz, Donald Trump conhece Roy Cohn em um exclusivíssimo restaurante de Nova York. É 1973, e Trump está à procura de um advogado que possa ajudar a empresa da família em uma investigação federal por suspeita de discriminação racial contra inquilinos afro-americanos. Seu pai, o rígido Fred Trump (Martin Donovan, ator-fetiche do diretor Hal Hartley nos anos 1980 e 1990), desconversa:
— Como posso ser racista se tenho um motorista negro?
A contragosto do pai, Donald Trump também deseja transformar o abandonado hotel Commodore, em uma zona degradada de Nova York, em um empreendimento turístico de luxo. Roy Cohn acolhe o jovem empresário e passa a moldá-lo para o sucesso. Trump assina uma espécie de pacto com o diabo, mas quem acaba sofrendo mais é o próprio diabo. Paulatinamente, o protagonista vai perdendo os traços humanizados vistos no início do filme. Se antes, por exemplo, era um romântico sedutor com Ivana Zelnícková, a modelo tcheca que viria a se tornar sua primeira esposa, depois é capaz de humilhar e estuprar a personagem encarnada pela búlgara Maria Bakalova, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante por Borat: Fita de Cinema Seguinte (2020).
O Criador é suplantado pela Criatura — e a comparação com o mito de Frankenstein ganha imagem na cena em que o personagem principal se submete a uma lipoaspiração e a uma cirurgia capilar. Trump vira um símbolo de ambição desmesurada, vaidade excessiva, insensibilidade, corrupção, preconceito, traição. Aprendeu direitinho, como se viu na sua carreira profissional e como se vê na sua carreira política, as lições dadas no filme por Roy Cohn para se tornar um vencedor:
1) Atacar, atacar, atacar. Como Trump diz mais tarde, tomando como seu o ensinamento, se alguém te golpear com uma faca, revide com uma bazuca.
2) Não admita nada. Negue tudo.
3) Não importa o que aconteça, declare vitória e nunca reconheça a derrota.
4) Nunca atenda o telefone, pois é sinal de fraqueza: contrate uma secretária.
5) O foco é no adversário, não na bola.
6) Explore os seus inimigos e cause medo.
7) Foda-se o que pensam de você.
8) Por isso, tanto faz se falam bem ou mal de você na imprensa: o importante é que seu nome está nos jornais.
9) Não existe verdade, tudo é construção. A verdade é uma ficção, produzida por homens.
Há uma décima lição em O Aprendiz, essa definitivamente positiva: escale o melhor elenco possível. Desde a primeira cena, enxergamos Donald Trump em Sebastian Stan, que emula à perfeição seus trejeitos físicos e sua prosódia. Conhecido pela intensidade, Jeremy Strong magnetiza o olhar do espectador em qualquer das facetas de Roy Cohn, seja a de predador veloz, seja a do sujeito completamente fragilizado pela doença. E Maria Bakalova empresta complexidade a Ivana, uma mulher que, em um momento doloroso, dá-se conta do custo de ter tudo e percebe que é menos uma pessoa real do que uma personagem da mídia.
É assinante mas ainda não recebe a minha carta semanal exclusiva? Clique AQUI e se inscreva na minha newsletter.
Já conhece o canal da coluna no WhatsApp? Clique aqui: gzh.rs/CanalTiciano