Em cartaz a partir deste domingo (7) no Amazon Prime Video, Oppenheimer (2023) era tudo o que a Academia de Hollywood queria e precisava: um ganhador do Oscar com engajamento do público, respaldo da crítica e sintonia com o contexto político.
Foram sete estatuetas douradas recebidas na 96ª cerimônia de premiação, realizada no Teatro Dolby, em Los Angeles, no dia 10 de março: melhor filme, direção (o britânico Christopher Nolan), ator (o irlandês Cillian Murphy, em sua sexta colaboração com o cineasta, após a trilogia do Batman, A Origem e Dunkirk), ator coadjuvante (o estadunidense Robert Downey Jr.), fotografia (o holandês Hoyte van Hoytema), edição (a estadunidense Jennifer Lame, fundamental nas tarefas de colocar o espectador na cabeça do protagonista e de organizar as diferentes linhas temporais da narrativa) e trilha sonora original (o sueco Ludwig Göransson).
Fazia muito tempo — exatos 20 anos — que a Academia de Hollywood não entregava seu principal troféu a um título efetivamente abraçado pelos espectadores, um legítimo campeão de bilheteria. O último havia sido O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (2003), que arrecadou US$ 1,14 bilhão e faturou 11 categorias — é um dos recordistas, ao lado de Ben-Hur (1959) e Titanic (1997).
De lá para cá, nenhum ganhador batera a marca do meio bilhão — o que chegou mais perto foi O Discurso do Rei (2010), com US$ 423,9 milhões. Oppenheimer, com US$ 965,1 milhões, tem sozinho uma bilheteria que supera a soma dos seis vencedores anteriores: A Forma da Água (2017), Green Book (2018), Parasita (2019), Nomadland (2020), No Ritmo do Coração (2021) e Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (2022).
Bilheteria do Oscar de melhor filme na era 2000
- Beleza Americana (2000): US$ 356,2 milhões
- Uma Mente Brilhante (2001): US$ 313,5 milhões
- Chicago (2002): US$ 306,7 milhões
- O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (2003): US$ 1,14 bilhão
- Menina de Ouro (2004): US$ 216,7 milhões
- Crash: No Limite (2005): US$ 98,4 milhões
- Infiltrados (2006): US$ 291,4 milhões
- Onde os Fracos Não Têm Vez (2007): US$ 171,6 milhões
- Quem Quer Ser um Milionário? (2008): US$ 378,4 milhões
- Guerra ao Terror (2008*): US$ 49,2 milhões
- O Discurso do Rei (2010): US$ 423,9 milhões
- O Artista (2011): US$ 133,4 milhões
- Argo (2012): US$ 232,3 milhões
- 12 Anos de Escravidão (2013): US$ 187,7 milhões
- Birdman (2014): US$ 103,2 milhões
- Spotlight (2015): US$ 98,6 milhões
- Moonlight (2016): US$ 65,1 milhões
- A Forma da Água (2017): US$ 195,2 milhões
- Green Book (2018): US$ 321,7 milhões
- Parasita (2019): US$ 262 milhões
- Nomadland (2020): US$ 39,4 milhões
- No Ritmo do Coração (2021): US$ 1,9 milhão
- Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (2022): US$ 143,4 milhões
- Oppenheimer (2023): US$ 965,1 milhões
(*) Guerra ao Terror concorreu no Oscar de 2010
Mas Oppenheimer não foi sucesso só de audiência. Conquistou a crítica e a indústria: recebeu praticamente todos os chamados prêmios prévios do Oscar, como o Globo de Ouro, o Critics Choice, o Bafta, da Academia Britânica, os troféus da Associação dos Produtores dos EUA e dos sindicatos dos cineastas, dos atores, dos diretores de fotografia, dos editores, dos compositores...
E Oppenheimer é um filme que reflete o estado de espírito atual, tanto dos Estados Unidos, sacudidos pela polarização que antecede as eleições presidenciais, quanto o do mundo, assustado pelas guerras como Rússia contra Ucrânia e Israel versus Hamas. Afinal, a trama sobre o físico considerado o pai da bomba atômica reconstitui um capítulo doloroso da história estadunidense: o bombardeio de Hiroshima, no Japão, em 6 de agosto de 1945, nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Estima-se que morreram entre 90 mil e 166 mil pessoas, a maioria civis, no ato da explosão ou por causa do efeito de queimaduras e do envenenamento radioativo. Que uma obra sobre um tema tão sério tenha atingido quase US$ 1 bilhão nas bilheterias é mais um feito na carreira de Christopher Nolan, hábil na capacidade de propor algo a mais no cinema de entretenimento — vide A Origem (2010), uma espécie de filme de ação para psicanalistas, abordando questões como a interpretação dos sonhos, os arquivos secretos nos escaninhos da mente, as projeções que fazemos de quem nos cerca e de nós mesmos, a engenharia da identidade, a tênue fronteira entre memória e imaginação e os mecanismos de defesa do inconsciente.
Aos 53 anos, Nolan já havia sido indicado cinco vezes à estatueta dourada. A primeira foi como coautor do roteiro original de Amnésia (2000), escrito com seu irmão, Jonathan Nolan. Depois, como roteirista e coprodutor, ao lado de sua esposa, Emma Thomas, de A Origem. E novamente como um dos produtores e também como diretor de Dunkirk (2017). Em 2024, concorria nas categorias de melhor filme (como um dos produtores), direção e roteiro adaptado.
Oppenheimer é seu 12º longa-metragem. Com orçamento de US$ 100 milhões e mais de 70 atores no elenco, é seu filme com maior duração — três horas — e o primeiro a incluir uma cena de sexo. Também de modo inédito, o cineasta escreveu um roteiro na primeira pessoa para mergulhar no íntimo do físico estadunidense J. Robert Oppenheimer (1906-1967) durante sua turbulenta trajetória.
O diretor baseou-se numa biografia premiada com o Pulitzer, Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano, de Kai Bird e Martin J. Sherwin. Trata-se de um homem que queria deixar de fazer um trabalho tão abstrato e tão distante ("o que acontece com as estrelas quando morrem?") para efetivamente causar impacto na vida das pessoas e no planeta.
Quando terminou o script, o cineasta enviou o seguinte pedido ao supervisor de efeitos visuais Andrew Jackson: "Temos de encontrar uma maneira de entrar na cabeça desse cara. Temos de ver o mundo como ele o vê, temos de ver os átomos se movendo, temos de ver como ele imagina as ondas de energia, o mundo quântico. E então temos de ver como isso se traduz no teste Trinity (o pioneiro experimento com arma nuclear da história, realizado pelos Estados Unidos em 16 de julho de 1945, no deserto de Los Alamos, no Novo México). Temos de sentir o perigo, sentir a ameaça. Vamos fazer todas essas coisas, mas sem nada de computação gráfica" — como de costume em sua carreira, mas sem, obviamente, detonar uma bomba de verdade.
Também como de hábito nas obras de Nolan, o filme não segue uma estrutura linear. Temos, basicamente, três tempos narrativos. Dois deles são retratados com cores pelo diretor de fotografia Hoyte Van Hoytema, parceiro do diretor desde Interestelar (2014): é a história contada pela perspectiva de Oppenheimer (brilhantemente interpretado por Cillian Murphy), o que inclui momentos de imaginação do protagonista e de inventividade visual do diretor. Como quando, durante um discurso ufanista para militares e cidadãos estadunidenses após a explosão atômica em Hiroshima, o personagem vislumbra as consequências devastadoras e duradouras do chamado Projeto Manhattan, programa do governo estadunidense que, durante a Segunda Guerra, buscava montar uma bomba nuclear antes dos nazistas — missão que envolveu US$ 2 bilhões, três anos de trabalho e 4 mil pessoas.
Um dos períodos vistos pelo olhar de Oppenheimer é 1954. Enquanto é interrogado pela Comissão de Energia Atômica estadunidense, que ameaça revogar o acesso do físico a informações confidenciais e despojá-lo de sua influência política direta, por causa de suas manifestações contra o desenvolvimento de um arsenal nuclear e de suas relações com pessoas ligadas ao Partido Comunista (eram os tempos da Guerra Fria entre EUA e URSS), ele rememora sua juventude, seus anseios, seus estudos, seus amores e os passos que levaram ao bombardeio do Japão.
Acompanhamos os encontros com físicos como Albert Einstein (Tom Conti) e Niels Bohr (Kenneth Branagh); os relacionamentos com mulheres como a psiquiatra Jean Tatlock (Florence Pugh, subaproveitada) e a bióloga Katherine Puening, a Kitty (Emily Blunt, indicada a atriz coadjuvante); a formação da equipe do Projeto Manhattan, sob a liderança do tenente-general Leslie Groves (Matt Damon, com uma ironia canastrona que casou bem com o papel); e a célebre, curta e malfadada reunião com o presidente Harry S. Truman (Gary Oldman, desfrutando cada segundo em cena), já depois da rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial.
O terceiro tempo narrativo tem imagens em preto e branco para evidenciar, nas palavras do cineasta, que as cenas são objetivas. O personagem central é o empresário e almirante Lewis Strauss, encarnado por Robert Downey Jr. com um misto de sobriedade e malícia. Figura chave no programa nuclear, ele passa por uma sabatina no Senado, em 1959, para confirmar sua nomeação como secretário de Comércio dos EUA. Na pauta, estão suas relações com Oppenheimer e a corrida armamentista contra os soviéticos.
Apesar de ser uma cinebiografia centrada em um personagem e ambientada no passado, Oppenheimer tem a ambição de falar da humanidade como um todo e de dilemas muito contemporâneos. Por um lado, seu protagonista nos lembra como somos complexos e contraditórios: Oppenheimer é egocêntrico, mas também é atormentado por dúvidas e inseguranças (será que a bomba vai trazer a paz, mesmo que pelo medo, que ele imagina?); é um cientista, mas também é um sujeito passional; é um gênio, mas também é ingênuo ("Como esse homem que viu tanta coisa pôde ser tão cego?", afirma Strauss).
Por outro lado, Nolan disse esperar que seu filme sirva de alerta para as empresas de tecnologia. "Quando falo com os principais pesquisadores no campo da inteligência artificial (IA), eles dizem que estão em seu momento Oppenheimer", declarou o diretor. "Eles estão olhando para a história para tentar responder: 'Quais são as responsabilidades dos cientistas que desenvolvem novas tecnologias que podem ter consequências não intencionais?'."
Uma ambição de Nolan, a de tentar tornar acessíveis ao grande público conceitos complexos — vide Interestelar, que trata de teoria da relatividade, buraco de minhoca (uma deformação do espaço-tempo que permitiria viagens intergalácticas) e quinta dimensão —, acaba jogando contra em Oppenheimer. Se no início o excesso de personagens, linhas narrativas e termos da física quântica e a montagem fragmentada da editora Jennifer Lame são um desafio para o espectador, logo surge o pendor do cineasta para ser explicativo e reiterativo. Por exemplo, a citação dos créditos de abertura, que compara J. Robert Oppenheimer a Prometeu (o deus da mitologia grega condenado à tortura eterna por ter roubado o fogo e dado aos mortais), será retomada mais adiante por Niels Bohr. O mesmo acontece com os versos de um poema épico indiano lido por Oppenheimer para Jean Tatlock, "E agora me tornei a Morte / Destruidor de mundos", repetido pelo protagonista à luz da bomba atômica. É como se o diretor não confiasse na capacidade do público de prestar atenção, reter informações, entender analogias, metáforas, simbolismos. Essa desconfiança se reflete na trilha sonora composta pelo sueco Ludwig Göransson, que é ora empolgante, ora perturbadora, mas também é onipresente e intrusiva no seu papel de guia emocional.
Por fim, como Oppenheimer é um filme de Christopher Nolan, não poderia faltar a ambição de surpreender o espectador. Mesmo sendo baseada em fatos históricos e documentados, a trama conta com pelo menos uma reviravolta.