Costumo me desviar bem das bombas que despencam semanalmente nas salas de cinema e nas plataformas de streaming. Mas às vezes dou azar, ou cedo à curiosidade mórbida, ou é dever do ofício. A última a me atingir era inescapável: Maníaco do Parque: Um Serial Killer Brasileiro (2024), que estreia nesta sexta-feira (18) no Amazon Prime Video.
Trata-se de uma ficção baseada na história real do motoboy Francisco de Assis Pereira, interpretado por Silvero Pereira, o Lunga do filme Bacurau (2019) e o Zaquieu da novela Pantanal (2022). Ele estuprou, assassinou e escondeu os corpos de 11 mulheres no Parque do Estado, em São Paulo, no final da década de 1990. As vítimas eram atraídas com a falsa promessa de participação em propagandas de cosméticos. Quando sua identidade foi descoberta e o cerco policial se intensificou, o assassino serial fugiu da capital paulista, mas acabou capturado no dia 4 de agosto de 1998, em Itaqui, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul (essa história será reconstituída em uma próxima coluna). Francisco foi condenado a 268 anos de prisão — dos quais cumprirá 30, período máximo de reclusão no país à época de seu julgamento (em 2019, o Pacote Anticrime ampliou o patamar para 40 anos, mas a lei não é retroativa).
Convém frisar ficção: nunca existiram duas das personagens principais do filme escrito por L.G. Bayão, coautor de A Porta ao Lado (2023) e Aumenta que É Rock'n'Roll (2024). Uma é a repórter Elena, papel de Giovanna Grigio, que viveu a Mili da novela infantil Chiquititas entre 2013 e 2015 e a Samantha dos seriados Malhação, entre 2017 e 2018, e As Five, entre 2020 e 2023. Uma novata na redação do jornal Notícias Populares, ela fica obstinada em desvendar quem é o Maníaco do Parque — e, no longa-metragem, é a própria jornalista que dá essa alcunha — quando os crimes começam a vir à tona, pois, na condição de uma jovem mulher, se identifica com as vítimas, conforme a atriz disse em entrevistas.
A outra personagem é a psicóloga Martha (encarnada por Mel Lisboa), a irmã mais velha de Elena. Ela ajuda a mana a traçar um perfil psicológico do serial killer. A repórter diz que quer entrar na cabeça do Maníaco do Parque. Mas o filme nunca entra na cabeça do Maníaco do Parque, o que tolhe o desempenho de Silvero Pereira.
Dado o currículo do diretor, podia-se prever que Maníaco do Parque seria ruim. Maurício Eça realizou a medonha trilogia baseada no caso Suzane von Richthofen — A Menina que Matou os Pais (2021), O Menino que Matou os Pais (2021) e A Menina que Matou os Pais: A Confissão (2023) — e o pavoroso Turma da Mônica Jovem: Reflexos do Medo (2024). Mas não esperava um desastre praticamente completo.
Giovanna Grigio faz jus ao título do longa-metragem que protagonizou em 2023, Perdida. Tanto pior que a redação do Notícias Populares tem autenticidade perto do zero, pelo menos para quem trabalha ou já trabalhou em um jornal. Difícil engolir, por exemplo, a cena em que Elena, que é uma repórter iniciante, invade a sala de reunião dos editores e dá um esporro no chefe interpretado por Marco Pigossi (que, justiça seja feita, empresta dignidade ao papel). E sai de lá sem ser demitida.
Mel Lisboa é prejudicada pelo texto canhestro. Seus diálogos com a irmã sobre a personalidade e o comportamento de um psicopata parecem tirados da Wikipedia, sem nenhum tratamento dramatúrgico.
A direção de fotografia de Marcelo Trotta e a edição de Gustavo Giani se esforçam para serem anódinas ou, na melhor das hipóteses, genéricas. Já as sequências de estupro e assassinato, ainda que não cheguem a glamorizar a figura do vilão, são estilizadas em excesso, com câmera lenta e efeitos de distorção que tornam as caretas de Silvero Pereira quase caricatas.
A trilha sonora joga contra também. As escolhas são esquisitas, aleatórias. A música de abertura não situa nem o cenário (São Paulo, Brasil) nem a época (1998). Aliás, chega a ser um anacronismo: trata-se da gravação que Joey Ramone fez em 2002 da clássica canção estadunidense What a Wonderful World.
Mais adiante, a trilha envereda pelo clichê associativo: Territory (1993), da banda de heavy metal Sepultura, embala um momento de violência do motoboy Francisco.
Há uma outra versão cover, a do rapper Xamã (que, no filme, tem uma participação como o patrão de Francisco) para uma canção folclórica dos Estados Unidos. Ela é conhecida por pelo menos três nomes: In the Pines, Black Girl e Where Did You Sleep Last Night?, título com o qual foi gravada pelo blueseiro Lead Belly em 1944 e pelo Nirvana no MTV Unplugged da banda grunge, em 1993. Trata-se de uma murder ballad, como os estadunidenses chamam, uma balada cuja letra gira em torno de um assassinato. Seus versos, direcionados a uma garota que passou a noite "nos pinheiros", "onde o sol nunca brilha" ("My girl, my girl, don't lie to me / Tell me where did you sleep last night / In the pines, in the pines / Where the Sun don't ever shine"), até cabem em uma narrativa sobre mulheres violentadas e enforcadas com um cadarço em um parque. Mas o arranjo musical e a forma com a qual Xamã canta remetem a um comercial sensual ou a um thriller erótico — fica inadequado em uma narrativa sobre mulheres violentadas e enforcadas com um cadarço.
Salva-se uma única cena no filme. É aquela que mostra Elena saindo do jornal, à procura do Maníaco do Parque, e então a câmera, numa panorâmica, flagra um sorridente Francisco andando de patins em uma rua muito próxima. Neste momento, o diretor Maurício Eça consegue traduzir visualmente a ideia de que, sim, os monstros estão sempre entre nós, escondidos no anonimato das grandes cidades, levando suas vidas cotidianas até serem dominados por seus impulsos.
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