Disponível a partir desta quinta-feira (21) no Amazon Prime Video, Anatomia de uma Queda (Anatomie d'une Chute, 2023) é o filme mais fulgurante da grande fase vivida pelas diretoras francesas.
Tudo começou em maio de 2021, quando Julia Ducournau tornou-se a segunda mulher na história a conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, por Titane (2021). Alguns meses depois, Audrey Diwan recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza por O Acontecimento (2021). No ano seguinte, na mesma competição italiana, Alice Diop ganhou o Grande Prêmio do Júri e o troféu de melhor cineasta estreante por Saint Omer (2022). Em 2023, foi a vez de Justine Triet faturar a láurea máxima de Cannes com Anatomia de uma Queda. Agora em fevereiro de 2024, Mati Diop (sem parentesco com Alice) levou o Urso de Ouro do Festival de Berlim com o documentário Dahomey (2024).
Anatomia de uma Queda foi além do circuito dos festivais. Além de merecer cinco estatuetas da Academia Europeia, dois Globos de Ouro, um Bafta e um Critics Choice, tem no currículo o Oscar de melhor roteiro original (escrito por Triet com seu companheiro, Arthur Harari). Na premiação da Academia de Hollywood, também disputou em melhor filme, direção, atriz (Sandra Hüller) e edição (Laurent Sénéchal). Em número de indicações para uma produção da França, perde apenas para O Artista (2011), que teve 11 (e venceu cinco categorias, incluindo a principal). Mas vale lembrar que esse título é mudo, portanto, o de Justine Triet é o recordista entre os longas falados em francês.
O recorde só não é maior porque o comitê da França cometeu um grande erro na escolha para o Oscar de melhor filme internacional. Segundo maior campeão da categoria, com 12 troféus — dois a menos do que a Itália —, mas sem ganhar desde 1993, quando Hollywood consagrou Indochina (1992), o país preteriu Anatomia de uma Queda, mesmo que tivesse a Palma de Ouro e o sucesso de público a favor (no total, foram cerca de 1,7 milhão de ingressos vendidos no mercado nacional; com custo equivalente a US$ 6,7 milhões, já arrecadou globalmente cinco vezes mais).
Por 4 a 3 na votação, a comissão de seleção elegeu O Sabor da Vida, drama romântico-gastronômico estrelado por Juliette Binoche e Benoît Magimel que rendeu a Anh Hung Tran o prêmio de direção em Cannes e foi eliminado na semifinal do Oscar 2024 — no Brasil, vai estrear em 11 de abril. Um texto da jornalista Elsa Keslassy publicado no site da revista Variety disse que em setembro, quando a França tomou sua decisão, O Sabor da Vida "tinha os ingredientes certos, pelo menos no papel, para aparecer como a escolha mais apetitosa": é um romance culinário que une um ex-casal da vida real (Binoche e Magimel) e remete a títulos premiados ou indicados ao Oscar, como o dinamarquês A Festa de Babette (1987) e Chocolate (2000), que era estrelado pela mesma atriz e concorreu em cinco categorias, incluindo melhor filme.
Mas segundo uma fonte da indústria ouvida por Keslassy, "algumas pessoas no comitê mantiveram a imagem dos eleitores dessa categoria como pessoas mais velhas e nostálgicas, e não levaram em conta o fato de que os eleitores do Oscar mudaram: eles são mais jovens e mais diversificados do que costumavam ser. Eles gostam de ser desafiados". Pois bem: apesar de ter um tema habitual entre as indicações da Academia de Hollywood, o Holocausto, o vencedor da categoria em 2024, Zona de Interesse, não deixa de ser um filme desafiador, ao dissociar imagem e som no retrato do cotidiano familiar do comandante do campo de extermínio de Auschwitz.
Anatomia de uma Queda é uma mistura de suspense de tribunal com drama conjugal de contornos bergmanianos. A atriz alemã Sandra Hüller, que interpreta em dois idiomas que não são o seu (o inglês e o francês), cria uma personagem multifacetada: uma escritora — também chamada de Sandra — que é a principal suspeita de matar o marido, Samuel, em um chalé isolado nos Alpes.
O corpo foi descoberto pelo filho do casal, o menino cego Daniel (Milo Machado Graner), mas só quem sabe o que realmente aconteceu — foi um crime, um suicídio, um acidente? — é o cão da família, como brincou Justine Triet em entrevistas. Com sete anos, o border collie Messi recebeu no Festival de Cannes o prêmio destinado a animais que atuam e foi uma das sensações na cerimônia do Oscar, em Los Angeles.
A investigação traz à tona as fissuras do casamento, coloca um peso sobre o garoto — seu testemunho pode ser decisivo para culpar ou inocentar a mãe — e permite ao filme refletir sobre a subjetividade do olhar (tanto na ficção quanto na vida real) e discutir um tema muito contemporâneo: o que é verdade? Todos esses elementos fizeram Anatomia de uma Queda ser um dos títulos mais badalados e comentados dos últimos tempos.
A crítica Wendy Ide, do britânico The Observer, escreveu que "um dos principais prazeres do filme é a sua incerteza, as dúvidas incômodas que permanecem e a sensação de que uma peça crucial do quebra-cabeças está tentadoramente fora de alcance". No australiano PerthNow, Wenlei Ma disse que "Anatomia de uma Queda pede ao público que pense sobre como pensamos sobre as coisas e como escolhemos aquilo em que acreditamos. O filme está interessado tanto na forma de contar histórias quanto em contar uma história".
Na sua coluna em GZH do dia 16 de fevereiro, a escritora Martha Medeiros fez uma reflexão inspirada no filme francês: "Se eu contar para você uma história que anda me incomodando, você julgará de acordo com o meu relato, apenas. Não conhecerá o outro lado. Não adivinhará o que ocultei. Não tem como saber que meu incômodo está relacionado não só a esse episódio específico, mas a memórias remotas da infância. Minha história é verdadeira, mas não é conclusiva nem para mim mesma. Memórias traem, raivas nos fazem exagerar, o vitimismo ficciona confissões. Se há inexatidão até em conversas sinceras e afetivas, imagine entre quem mente e quem adora uma fofoca, entre quem manipula e quem é inocente, entre quem não se expressa bem e quem não capta entrelinhas. O universo é repleto de mal-entendidos. É como se cada um de nós falasse um idioma próprio, e tivesse que contar com a compreensão de quem não domina o que dizemos. (...) Como podemos ser julgados por quem não nos conhece profundamente, não testemunhou o que vivemos e só conta com a nossa habilidade (ou inabilidade) no uso das palavras?".