Se eu contar para você uma história que anda me incomodando, você julgará de acordo com o meu relato, apenas. Não conhecerá o outro lado. Não adivinhará o que ocultei. Não tem como saber que meu incômodo está relacionado não só a esse episódio específico, mas a memórias remotas da infância. Minha história é verdadeira, mas não é conclusiva nem para mim mesma. Memórias traem, raivas nos fazem exagerar, o vitimismo ficciona confissões.
Se há inexatidão até em conversas sinceras e afetivas, imagine entre quem mente e quem adora uma fofoca, entre quem manipula e quem é inocente, entre quem não se expressa bem e quem não capta entrelinhas. O universo é repleto de mal-entendidos.
É como se cada um de nós falasse um idioma próprio, e tivesse que contar com a compreensão de quem não domina o que dizemos. Quando nos comunicamos em um idioma que não é o nosso, resumimos a experiência e simplificamos nossos sentimentos. Em português, tenho vocabulário e desenvoltura para me expressar com clareza. Em espanhol, menos. Em inglês, menos. Em alemão, emudeço.
Vale como metáfora, inclusive.
A pessoa com quem eu falo talvez seja fluente em maledicência e reconheça apenas nuances da minha sinceridade. Como podemos ser julgados por quem não nos conhece profundamente, não testemunhou o que vivemos e só conta com a nossa habilidade (ou inabilidade) no uso das palavras?
Essa reflexão foi despertada pelo excelente Anatomia de uma Queda, filme que concorre ao Oscar no próximo 10 de março e que tem calado plateias: na sala de cinema em que eu estava, não se escutava um suspiro. Cada diálogo, cada afirmação dos personagens era um pedacinho do quebra-cabeça a ser montado em busca da verdade. Diante de um impasse, como decidir quem tem razão?
É um filme de tribunal, mas de uma originalidade impactante, pois desconsidera o veredito. A matéria-prima do filme é a relatividade de tudo. Cada um de nós tem um pouco de razão e cada um de nós está equivocado. Procuramos equilibrar o certo e o errado a fim de chegar a um platô de entendimento minimamente aceitável, mas sempre haverá alguma injustiça no parecer final. Aliás, nem sempre no final. Há injustiças no meio. Há injustiças no começo.
Sempre foi assim e hoje está pior: os julgamentos deixaram de acontecer na Suprema Corte, estão pulverizados nas redes sociais. Todos os dias alguém pensa que sabe o que você está sentindo. Tem opinião sobre o motivo de você ter dito o que disse. Acha que você é do bem ou do mal, segundo critérios toscos.
Quanto maior a plateia em volta, menos conhecemos uns aos outros. Conhecer para quê, ora bolas? Duas ou três postagens são suficientes para saber qual é a sua.