É oportuno ou oportunista lançar um filme chamado Guerra Civil (Civil War, 2024), que imagina uma nova secessão nos Estados Unidos, no ano de uma eleição presidencial em que a polarização entre o Partido Democrata e o Partido Republicano está radicalizada?
Por um lado, a distopia escrita e dirigida pelo britânico Alex Garland e estrelada por Kirsten Dunst, Wagner Moura e Cailee Spaeny instiga a população a visualizar a fantasia sombria de um futuro próximo que remete a traumas do passado: o da Guerra Civil que matou 1,5 milhão de militares e cidadãos comuns entre 1861 e 1865, por causa da discórdia sobre a escravização dos negros — a maioria dos Estados do Sul queria manter, o Norte era contra.
Por outro, o longa-metragem que já está disponível na plataforma Max assumidamente não está interessado em discutir política, alinha-se mais ao gênero da ação e parece querer faturar em cima da tensão que marca o país desde que, em 6 de janeiro de 2021, apoiadores de Donald Trump invadiram o Congresso dos EUA para tentar impedir a certificação da vitória de Joe Biden. Não à toa, alguns analistas dizem temer menos uma vitória trumpista do que outra derrota para os democratas (agora com Kamala Harris como candidata), o que poderia provocar reações ainda mais violentas. A aposta no antagonismo e no medo deu certo: com US$ 122,6 milhões arrecadados, Guerra Civil se tornou a segunda maior bilheteria de uma produção do estúdio independente A24, que tem no currículo dois ganhadores do Oscar, Moonlight (2016) e Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (2022).
Garland, 54 anos, é um cineasta habituado a trafegar entre a ficção científica e o terror. Escreveu o roteiro de Extermínio (2002) e de Sunshine: Alerta Solar (2007), ambos dirigidos por Danny Boyle, adaptou um romance de Kazuo Ishiguro para Mark Romanek realizar Não me Abandone Jamais (2010) e assinou Ex-Machina: Instinto Artificial (2014), Aniquilação (2018) e Men: Faces do Medo (2022).
Guerra Civil remete a Extermínio. Novamente, somos apresentados a um cenário pós-apocalítico onde a violência impera — há explosões de bomba, execuções à queima-roupa, cenas de tortura. Novamente, a desconfiança, a intolerância e a belicosidade contaminam a todos. Novamente, esse mundo é visto pelos olhos de um personagem jovem — no caso, pelas lentes da fotojornalista novata interpretada por Cailee Spaeny, premiada como melhor atriz no Festival de Veneza na pele da protagonista de Priscilla (2023) e estrela de Alien: Romulus (2024).
Durante o ataque suicida de uma mulher-bomba em um protesto, Jessie, a personagem de Spaeny em Guerra Civil, é salva por uma renomada fotógrafa de guerra. Trata-se de Lee Miller (Kirsten Dunst, laureada no Festival de Cannes por Melancolia e indicada ao Oscar de coadjuvante por Ataque dos Cães), cujo nome homenageia a jornalista homônima (1907-1977) que, na Segunda Guerra Mundial, retratou o bombardeio aéreo de Londres pelos alemães, a libertação de Paris e os horrores dos campos de concentração nazistas de Buchenwald e Dachau.
Jessie vai passar por um processo de amadurecimento profissional ao se juntar a uma arriscada missão jornalística empreendida por Lee, já um tanto apática em relação às guerras, e seu colega cheio de adrenalina Joel (papel de Wagner Moura, hoje um dos atores brasileiros com mais status em Hollywood). Os dois querem viajar a Washington no intuito de entrevistar o entrincheirado presidente (encarnado por Nick Offerman) que rasgou a Constituição para se eleger pela terceira vez e extinguiu o FBI, a polícia federal dos EUA, entre outras medidas ditatoriais. O trio se torna um quarteto com o acréscimo do veterano repórter Sammy (Stephen McKinley Henderson), que pede uma carona até Charlottesville, cidade do Estado da Virgínia que, na vida real, virou palco de um confronto entre supremacistas brancos e ativistas antirracismo, em 2017, e que, na ficção, é onde as chamadas Forças Ocidentais estão se reunindo para um ataque à Casa Branca.
Assim, o cineasta britânico recorre a um subgênero tipicamente estadunidense, o do road movie, o filme de estrada, para colocar personagens e espectadores dos EUA diante de cenários aos quais eles estavam acostumados a ver de longe, com um distanciamento seguro: as cidades destruídas e desertas, os campos de refugiados apinhados de famílias, as terras de ninguém onde extremistas torturam e matam, as covas coletivas com cadáveres empilhados.
O ponto alto de Guerra Civil, e uma das cenas mais marcantes de 2024, é o encontro da trupe com o militar ou miliciano — não fica claro — vivido por Jesse Plemons (talvez o ator com o melhor agente ou com o maior pé-quente: nos últimos nove anos, apareceu no elenco de sete indicados à principal categoria do Oscar, de Ponte dos Espiões a Assassinos da Lua das Flores). Ali, Alex Garland, o diretor de fotografia Rob Hardy, o editor Jake Roberts e a equipe de som conjuram uma atmosfera exasperante à medida que o sujeito de óculos vermelho no rosto alvíssimo — um contraste por si só aterrador — e com o dedo no gatilho de uma metralhadora começa a questionar onde nasceram seus interlocutores, para julgar o quão americanos são.
Também não fica claro de que lado o personagem de Plemons está. Esse tipo de incerteza e de ambiguidade se revela uma faca de dois gumes. Por um lado, Guerra Civil deixa sem resposta algumas perguntas capitais. Por exemplo, como a Califórnia, Estado considerado progressista e que costuma votar no Partido Democrata, se aliou ao Texas, conservador e republicano, para formar as Forças Ocidentais?
E se Alex Garland sustenta que o filme é sobre a importância do jornalismo, por que a trama jamais mostra o impacto desse trabalho, por que não discute como é percebido pela sociedade, o quanto a imprensa molda a opinião pública e dita os rumos da guerra? A propósito: se, como afirma Lee Miller no início, jornalistas são encarados como inimigos, difícil acreditar que teriam amplo e irrestrito acesso na ação militar do clímax, uma sequência tão orquestrada, tão espetacularizada, que contradiz a "postura anti-guerra" declarada pelo diretor em entrevistas.
Por outro lado, essa mesma sequência, em que as fotos tiradas por Jessie dos supostos mocinhos fazem lembrar das imagens vazadas em 2004 que revelaram as torturas às quais soldados dos EUA submetiam detidos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, reforça uma tônica de Guerra Civil. Como bem resumiu o jornalista Richard Newby no Hollywood Reporter, este "é um filme abrasivo e desconfortável não porque subscreva totalmente qualquer ideologia em particular, mas porque não o faz — e odiamos não ter lados claramente definidos para torcer a favor ou contra, ou meios de comunicação que não se alinham perfeitamente com a nossa visão de mundo, para que possamos sair do cinema confiantes de que somos uma boa pessoa".
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