Priscilla (2023) tanto retoma o início da carreira da diretora Sofia Coppola quanto faz um contraponto à cinebiografia de Elvis Presley lançada por Baz Luhrmann em 2022. O filme tem sessões de pré-estreia no Espaço Bourbon Country e na Sala Eduardo Hirtz nos dias 27, 28, 29 e 30 de dezembro e entra em cartaz em 4 de janeiro.
Coppola habituou-se a retratar mulheres jovens oprimidas, silenciadas ou solitárias, como as cinco irmãs Lisbon de Virgens Suicidas (1999), seu primeiro longa-metragem, ou mesmo a protagonista de Maria Antonieta (2006): ela podia ser a rainha da França, mas mostrava-se impotente no palácio. Em Encontros e Desencontros (2002), pelo qual ganhou o Oscar de roteiro original e concorreu às estatuetas de melhor filme e direção, a tímida Charlotte vai a Tóquio para acompanhar o marido, fotógrafo de bandas de rock. Desamparada e com dificuldade para dormir, acaba esbarrando no bar do hotel em um ator de cinema que está no Japão para estrelar um comercial de uísque.
A exemplo da personagem de Scarlett Johansson em Encontros e Desencontros e da menina filha de ator vivida por Elle Fanning em Um Lugar Qualquer (2010), a protagonista de Priscilla reflete experiências da própria cineasta de 52 anos. Filha de Francis Ford Coppola, o diretor da célebre e oscarizada trilogia O Poderoso Chefão (1972-1990) e de Apocalypse Now (1979), Palma de Ouro no Festival de Cannes, Sofia era adolescente quando leu a autobiografia Elvis and Me, publicada em 1985 por Priscilla Presley, ex-esposa do chamado Rei do Rock. A identificação foi instantânea: ali estavam duas mulheres familiarizadas com a solidão e a pressão comuns a quem tem sua vida atrelada a um grande astro. Como bem resumiu a crítica Raquel Carneiro na Veja, "Priscilla e ela amadureceram sob o escrutínio público e batalharam para ter autonomia — mesmo assim, sabem que serão eternamente indissociáveis dos homens com quem compartilham um sobrenome".
Hoje com 78 anos, Priscilla Ann Beaulieu deu aval à produção do filme de Sofia. Mas sua filha, Lisa Marie, morta em janeiro de 2023, aos 54 anos, vetou o uso de músicas do pai na trilha sonora (I Will Always Love You aparece na voz de Dolly Parton, compositora da canção), por entender que Priscilla vilaniza Elvis Presley.
Pois bem: o cantor interpretado por Jacob Elordi (de Euphoria e Saltburn) é mesmo muito diferente daquele encarnado por Austin Butler em Elvis (2022). Se o filme de Baz Luhrmann centrou foco no brilhantismo, no frenesi e no pacto com o diabo firmado entre Presley e seu empresário, o coronel Tom Parker, no filme de Sofia Coppola é Elvis o demônio da Priscilla interpretada por Cailee Spaeny (a Erin da minissérie Mare of Easttown), que, por seu desempenho na cinebiografia, ganhou a Copa Volpi de melhor atriz no Festival de Veneza e está indicada ao Globo de Ouro.
Se Luhrmann sequer mencionou que o namoro começou quando Elvis tinha 24 anos e Priscilla apenas 14, Coppola filma cenas no colégio onde a adolescente estudava. Aos 17, ela se mudou para a mansão Graceland, ficando apartada da família, que na época morava na Alemanha, onde o padrasto servia como militar. Priscilla sofria com a ausência do próprio roqueiro, sempre às voltas com uma turnê de shows ou a produção de um filme.
Quando estavam juntos, havia amor, mas também abuso. Elvis gabaritaria em um teste sobre relacionamentos tóxicos (e aqui nem estamos falando das drogas que consumia). Impunha as roupas que Priscilla deveria vestir e a cor do seu cabelo. Reprimia o desejo sexual dela, que só foi transar pela primeira vez após o casamento, aos 21 anos — mas, longe de Graceland, ele dava suas escapadas, incluindo um caso com a atriz Ann-Margret. E o cantor não tinha pudor para agredir Priscilla se contrariado — chega a jogar uma cadeira na direção da esposa. Aliás, o Rei do Rock também era apaixonado por armas de fogo. Gostava de exibir um revólver na cintura e praticava tiro na companhia de um séquito masculino que o mimava.
Sofia Coppola é bastante repetitiva nesse retrato desabonador, dando a sensação de que Priscilla dura mais do que 110 minutos. O tom reiterativo é razoavelmente atenuado pela inserção de pequenos videoclipes nos quais a diretora faz exercícios estéticos, cada um com uma textura e um estilo diferente — como o o dia da piscina ou o da experiência do casal com LSD. Contudo, mesmo esses clipes se alongam mais do que o desejado.
De qualquer forma, esse retrato desabonador é o grande trunfo do filme, o que cria um paradoxo: Priscilla é menos a jornada emancipatória de sua protagonista do que um outro olhar sobre Elvis Presley. As atuações contribuem para essa percepção: Cailee Spaeny aposta mais na delicadeza e na sutileza, enquanto Jacob Elordi, mesmo que igualmente investindo na discrição, faz jus à sua altura de 1m96cm quando está em cena, tornando o cantor uma figura ameaçadora — mas que também agia como um crianção.
Priscilla suportava tudo porque amava Elvis — ou então via como amor a sua dependência emocional, cultivada desde a adolescência, primeiro como princesa de um conto de fadas, depois como prisioneira no castelo de um rei. Até que um dia ela cansou das traições, dos rompantes e do comportamento autodestrutivo, cansou da solidão, da melancolia e da angústia, e colocou como prioridade suas próprias necessidades, sua vontade de se sentir uma mulher desejada. Quando vai embora, em 1972, os versos de I Will Always Love You a acompanham: "Lembranças agridoces / Isto é tudo que levarei comigo / Adeus, por favor, não chore / Nós dois sabemos que eu não sou o que você precisa / Mas eu sempre te amarei / Eu sempre te amarei".