Nos últimos dias de 2023, estrearam no cinema dois filmes que mereciam ter sido lançados um pouco mais cedo — para não competir pela atenção do público junto às distrações do Natal e do Ano-Novo. E estreou diretamente no streaming um filme que merecia ter sido lançado no cinema — para ser visto na tela grande e com som alto, com o mínimo de distração.
Os dois primeiros são o irlandês A Menina Silenciosa (An Cailín Ciúin, 2022), em cartaz somente no Espaço Bourbon Country , e o brasileiro Propriedade (2022), com sessões na mesma sala e também no CineBancários (confira, logo abaixo, detalhes sobre as sessões desses títulos).
O terceiro é o britânico Saltburn (2023), já disponível no Amazon Prime Video.
A Menina Silenciosa (2022)
De Colm Bairéad. Representou a Irlanda na disputa do Oscar de melhor filme internacional, ao lado de Nada de Novo no Front (Alemanha), o vencedor, Argentina, 1985 (Argentina), Close (Bélgica) e Eo (Polônia). Baseada em conto da escritora Claire Keegan, a trama assinada pelo próprio diretor se passa no verão irlandês de 1981. Cáit (interpretada pela promissora Catherine Clinch), nove anos, integra uma família numerosa com pais pobres e negligentes, na zona rural. Enquanto a menina tímida tentar se adaptar à escola, sua mãe engravida novamente. Então, decide-se que a guria vai passar um tempo com primos distantes de meia-idade, o casal sem filhos Eibhlín (Carrie Crawley) e Seán (Andrew Bennett).
Faço coro aos elogios já publicados por críticos brasileiros: "A Menina Silenciosa provoca envolvimento emocional sem apelar para excessos sentimentais", mancheteou O Globo. "É sobre construção afetiva e, acima de tudo sobre como a ternura é revolucionária", escreveu o site Persona. "São os pequenos detalhes deste filme silencioso que o tornam grandioso", afirmou o Cine Set. "Tem a cena mais comovente do ano", definiu o Ambrosia. (Sessões no Espaço Bourbon Country, às 17h e às 21h nesta quarta, 27, e às 16h30min a partir de quinta-feira, 28; e na Cinemateca Paulo Amorim, a partir desta quinta, às 15h15min — nos dias 2 e 3 de janeiro, também às 19h15min)
Propriedade (2022)
De Daniel Bandeira. O segundo longa-metragem do realizador de Amigos de Risco (2007) começa em Recife, onde a rica estilista Teresa (Malu Galli, em ótima atuação, calcada no olhar e no físico) ainda se recupera de um episódio de violência urbana. Seu marido (Tavinho Teixeira) propõe passar uns dias na fazenda da família, para onde vão a bordo de um carro novo, todo blindado. Chegando lá, o casal depara com uma revolta dos empregados — que trabalham sob condições análogas à escravidão e agora correm o risco de serem despejados, já que o local deve ser transformado em um empreendimento turístico. O único refúgio é o interior do veículo, onde o vidro separa dois mundos.
Fã dos gêneros do suspense e do terror, o diretor e roteirista pernambucano Bandeira disse que deu início a Propriedade como um exercício formal sobre enclausuramento, mas acrescentou contornos político ao perceber a polarização do Brasil a partir da primeira eleição de Dilma Rousseff para a Presidência, em 2010. "É uma espécie de cautionary tale", ele afirmou em entrevistas: "Se não começarmos a se entender, a conversar, a fazer concessões para o outro, vamos chegar a uma situação de não retorno. A incomunicabilidade é o motor da nossa tragédia". O filme também é polarizador: o espectador ficará ao lado da protagonista traumatizada e acuada, mas que individualiza uma elite que se apoia na desigualdade social, na exploração da mão de obra e na falta de empatia? Ou o público vai compactuar com as práticas violentas — que incluem tortura — de um coletivo que luta por posse da terra, pagamento justo e liberdade? As contradições ampliam o impacto e a ressonância da história. (Sessões no CineBancários — sala que entra em recesso no dia 30 de dezembro — às 17h e às 19h; no Espaço Bourbon Country, nesta quarta, 27, às 19h, e às 18h30min a partir de quinta, 28; e na Cinemateca Paulo Amorim, às 17h15min desta quarta e às 15h30min a partir de quinta)
Saltburn (2023)
De Emerald Fennell. Atriz, diretora e roteirista, a britânica ganhou o Oscar de melhor roteiro original por seu primeiro longa-metragem, Bela Vingança (2020), no qual faz uma crítica mordaz à cultura do estupro. Agora, tendo novamente um protagonista obcecado e que usa o sexo (ou a promessa de sexo) como arma, Fennell mira o esnobismo, a hipocrisia e a alienação da aristocracia.
A trama se passa em 2006 e acompanha a trajetória de um desprestigiado calouro da prestigiadíssima Universidade de Oxford, Oliver Quick — papel de Barry Keoghan, indicado ao Oscar de ator coadjuvante por Os Banshees de Inisherin (2022). Como o personagem de O Talentoso Ripley (o livro de Patricia Highsmith levado ao cinema em 1960 e em 1999), ele almeja a dolce vita — e também cobiça o bonitão e popular Felix Catton (Jacob Elordi, da série Euphoria, da trilogia A Barraca do Beijo e o Elvis Presley da cinebiografia Priscilla).
Um acidente com a bicicleta de Felix coloca Oliver na rota do sol — o ápice é o convite para passar as férias de verão na mansão da família Catton. Lá, será recebido por Sir James (Richard E. Grant), o pai, Elspeth (Rosamund Pike), a mãe, Venetia (Alison Oliver), a irmã, Farleigh (Archie Madekwe), o primo, e Duncan (Paul Rhys), o mordomo — além da "pobre querida" Pamela (Carey Mulligan, a estrela de Bela Vingança, aqui fazendo apenas uma breve porém importante participação).
Na mansão onde evoca o clássico Teorema (1968), de Pier Paolo Pasolini, Emerald Fennell expõe contrastes e idiossincrasias: a suntuosidade convive com a decadência, realçada por uma direção de fotografia que dá preferência às sombras e à escuridão; os corpos lindos escamoteiam fragilidades psicológicas; os Catton são eruditos nos modos e nos diálogos, mas de noite veem filmes popularescos; os jantares exigem formalidades e jamais podem ser cancelados, mesmo em caso de morte. Ainda que algumas cenas estejam destinadas a perdurarem na memória do espectador (como a do ralo da banheira ou a da dança do epílogo), Saltburn não é tão marcante quanto Bela Vingança. Talvez porque, a certa altura, passe a investir demais nos códigos do thriller de suspense, com reviravoltas e explicações. Mas sobrevivem as atuações de Rosamund Pike e, principalmente, Barry Keoghan (ambos concorrem ao Globo de Ouro). Com um rosto entre o estranho e o atraente, o ator irlandês pode, no mesmo instante, expressar sentimentos conflitantes como vulnerabilidade e perversidade. Aos 31 anos, parece ter um futuro radiante pela frente. (Amazon Prime Video)