A Brasa, que comemora um ano de vida neste mês de setembro, é uma editora de histórias em quadrinhos localizada em Porto Alegre que chegou chegando. Seus dois lançamentos de estreia, Brega Story, de Gidalti Jr., e Lovistori, de Lobo e Alcimar Frazão, apareceram entre os finalistas da primeira edição do CCXP Awards, premiação do maior evento brasileiro de cultura pop, surgido em 2014 em São Paulo. Brega Story venceu como melhor álbum e recebeu indicações a melhor quadrinho, quadrinista, desenhista e arte-finalista — entre os disputantes desta última categoria, estava Frazão.
Brega Story também integrou o top 10 no Prêmio Grampo, votação criada em 2015 pelo jornalista Ramon Vitral e pelo editor Lielson Zeni, e foi um dos 10 indicados na categoria Lançamento do 38º Prêmio Angelo Agostini, organizado pela Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo. E Lovistori é um dos três concorrentes, na categoria de HQ, da quinta edição do Prêmio Minuano, concedido pelo Instituto Estadual do Livro (IEL) — a entrega será em 8 de novembro.
A Brasa pode ser bem jovenzinha, mas seu editor, Lobo (o nome de batismo ele diz que já não lhe pertence mais), tem larga experiência no mercado. Aliás, seu currículo inclui a publicação independente que conquistou o primeiro Prêmio Jabuti de quadrinhos, instituído em 2017 pela Câmara Brasileira do Livro: Castanha do Pará, de Gidalti Jr. A parceria do editor porto-alegrense como o autor mineiro radicado em Belém (PA) foi retomada em Brega Story, que narra as desventuras de um cantor e compositor machista, homofóbico e inescrupuloso, Wanderson Jr., na efervescente cena musical da capital paraense. Na trama, circulam cantoras e dançarinas à la Joelma, da Banda Calypso, DJs das célebres aparelhagens, que ajudaram a popularizar o tecnobrega, aspirantes a estrelas, roadies explorados e políticos pilantras. Nos bastidores, esses personagens vivem numa corda-bamba entre o sucesso e o fracasso, lidam com a trairagem, o assédio sexual e as transformações culturais ("Os DJs são tratados como deuses. A batida deixa o cara entorpecido. As canções já não falam mais de amor, do relacionamento de duas pessoas"). Suas 320 páginas (30 delas a cores) podem ser às vezes reiterativas, às vezes caóticas, às vezes brilhantes.
Sentado à mesa de um café no bairro Bom Fim, Lobo, 53 anos, lembra que foi em 1984 que os quadrinhos se revelaram um campo dos sonhos:
— Chegou às minhas mãos O Homem que Sabia Voar (também conhecida como A História de Gerhard Shnobble, publicada originalmente em 1940 pelo estadunidense Will Eisner, dentro da série The Spirit). Puxa, até então eu não sabia que os quadrinhos eram capazes daquilo! Eu ainda era adolescente, até então meu contato era com quadrinhos infantis ou juvenis, como os de super-herói e as aventuras do Tarzan. Essa história do Eisner era tão dramática, tão bonita, tão bem narrada... Percebi como eram amplas as possibilidades dos quadrinhos.
A estreia profissional foi em 1991, como estagiário na Bienal Internacional de Quadrinhos, no Rio. Ainda na metade inicial dos anos 1990, tendo ao lado o desenhista Caco Xavier, escreveu sua primeira HQ, Claustrofobia — "Pretensiosa pra caramba, como toda obra de quem está começando". Depois, Lobo foi "ganhar dinheiro na publicidade", mas sempre dava um jeito de voltar a voar. Não raro, quebrava a cara.
— Em 2003, editei uma revista de bolso, a Mosh!, que misturava rock e quadrinhos. Imprimi mil gibis e levei para o FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos), em Belo Horizonte. A rodinha da mala quebrou, de tanto peso. Lá, muita gente pegava achando que era de graça, mas quando eu falava que custava R$ 3, devolviam. Acho que voltei com 980 edições. Numa mala sem rodinha.
Antes de fundar a Brasa, Lobo foi coordenador editorial da Desiderata e sócio-editor da Barba Negra. Nessas editoras, foi descobrindo a sua melhor posição nas quatro linhas das HQs.
— Sempre quis ser roteirista, mas sou bissexto, sofro muito, não tenho paciência. Então, resolvi virar editor, um trabalho no qual tenho muita facilidade — diz. — Meu papel é ser uma caixa de ressonância, iluminar os pontos cegos. No Brasil, existe o mito de que o editor interfere muito na obra. Eu acho que, quando há harmonia, a melhor ideia ganha. E tudo bem se o autor vier me provar que eu estava errado.
Na cadeira de editor, Lobo também desenvolveu uma mistura de olhar romântico ("Meu patrimônio são livros empilhados em casa") com visão empresarial ("Eu baixo a cabeça e faço meu trabalho").
— Como editor, não tenho prazer em pegar um material pronto e só embalar — diz Lobo, também justificando a decisão de não publicar obras estrangeiras na Brasa. — Gosto de participar do processo de criação, ler o roteiro, discutir a arte, pegar uma ideia em um lado e entregar o produto no outro. Porque uma HQ é isso, um produto. Não glamorizo, não trato os livros como se fossem meus filhos.
Não são seus filhos, mas podem receber carinhos, como a "personalização" dos cólofons (o último elemento impresso no miolo de um livro, que traz informações técnicas) — repare nos verbos utilizados. Não são seus filhos, mas podem crescer, se desenvolver. As 80 páginas de Lovistori se passam no mesmo universo de Copacabana (2009), obra que Lobo fez com o artista gaúcho Odyr nos tempos em que morava no Rio (viveu lá de 1989 até 2012):
— Sou fascinado pelo mundo da prostituição, é um ambiente rico. Muita coisa acontece na noite. Gosto de ficar observando, tomando minha cerveja, fumando meu charuto vagabundo. O que sobrevivia à ressaca, era o que eu escrevia.
Em Lovistori, Lobo e o paulista Alcimar Frazão acompanham o dia das "bodas de travesseiro" do casal formado por Paixão e Sereia — os nomes são extremamente simbólicos. Ele é policial militar; ela, travesti que se prostitui nas calçadas de Copacabana. Enquanto o primeiro canta Oh Happy Day, o traço maciço e em preto e branco de alto contraste da arte acende um sinal de alerta: estamos num território onde homens não assumem o amor por uma travesti, como aponta Monique Prada, escritora de Putafeminista (2018), em texto publicado ao final da história; estamos num mundo onde preconceito, decepção, marginalidade, prostituição, desafetos e morte são palavras que circundam o corpo de pessoas trans, como diz, em outro posfácio, Priscila Fróes, artista visual e também "putafeminista".
— Monique e Priscila foram fundamentais na construção de Lovistori, porque a nossa condição de homens cis e heterossexuais era um telhado de vidro — comenta Lobo. — As colocações que elas fizeram acabaram por definir novos rumos para a história. O final original era diferente.
Plínio Marcos e "Garota de Ipanema" em quadrinhos
A Brasa pode estar localizada em Porto Alegre, mas sua abrangência é nacional, como o nome sugere. "São quadrinistas brasileiros, contando histórias sobre personagens brasileiros para leitores brasileiros. Do Oiapoque ao Chuí. Da periferia pro centro. Do mar pro sertão. E vice-versa", afirma Lobo no material de divulgação.
O nome também deixa entrever o desejo de editar quadrinhos incandescentes, incômodos. Não à toa, o logotipo criado por Victor Marcello usa o tipo de letra característico do pixo paulistano.
Se Lovistori aborda a transfobia no Rio e Brega Story joga luz sobre o lado podre da busca por fama na música paraense, Barrela, o mais recente lançamento, tem como cenário uma prisão em Santos (SP). E Tarde Demais para Desver, que está em campanha de financiamento no site Catarse, vai compilar tiras publicadas no Instagram e material inédito do catarinense T0sko — nas palavras de Lobo, "um garoto nascido em uma família de missionários evangélicos que se descobre gay e é salvo pelo movimento punk anarquista".
Barrela é o primeiro título do selo Plinião em Quadrinhos. Lobo pretende adaptar os principais textos do dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999), autor "maldito" por dar voz aos marginalizados — prostitutas, homossexuais, criminosos — em peças como Dois Perdidos numa Noite Suja, Navalha na Carne e Abajur Lilás. Por causa de sua crueza e de sua iconoclastia, foi censurado e preso inúmeras vezes durante a ditadura militar.
Cada obra terá um quadrinista diferente. A estreia ficou a cargo do paulista João Pinheiro, que assinou com Sirlene Barbosa a premiada Carolina (2016) e que publicou no ano passado Depois que o Brasil Acabou (ambas pela editora Veneta). Nas 128 páginas de Barrela, seus desenhos em preto e branco e sua diagramação tornam ainda mais opressivo o ambiente carcerário onde os personagens Breco, Tirica, Portuga, Fumaça, Bahia, Louco e Garoto travam uma luta menos por poder do que por sobrevivência. Dentro daquela cela, onde a linguagem sórdida e desesperada reflete a exclusão pela sociedade e o abandono pelo Estado, a violência sexual é tão ameaçadora quanto cotidiana.
— Barrela é um portal: você entra de um jeito e sai modificado. É uma obra que não sai da tua cabeça, te engravida — ilustra Lobo.
Mas a Brasa também tem espaço para títulos menos chocantes em seu catálogo. Em primeira mão, Lobo conta que já está trabalhando em um projeto que vai juntar quadrinhos e música. Trata-se de uma série, com o nome provisório de MBQ, de HQs inspiradas em grandes canções brasileiras, como Garota de Ipanema (composta por Tom Jobim) e Apenas um Rapaz Latino-Americano (de Belchior).
— Não são meras adaptações das letras — adianta Lobo. — O importante é que o autor de cada quadrinho tenha uma relação pessoal com a música. Não pode atuar só como um artista contratado. Ele tem que trazer a visão dele, um contraponto, como o Stanley Kubrick (cineasta) fez em Laranja Mecânica ou em O Iluminado.
A coleção foi criada em parceria pela Brasa, pela Bienal de Quadrinhos de Curitiba e pelo Ministério das Relações Exteriores — a propósito, Lobo conta com um padrinho no Itamaraty: o diplomata Igor Trabuco, atualmente chefe do setor cultural na Embaixada do Brasil em Lima, no Peru, foi quem sugeriu o nome da editora. Está nos planos a exportação dessas HQs, aproveitando tanto o histórico sucesso internacional da música brasileira quanto o ótimo momento dos quadrinistas nacionais no Exterior — em março, Marcello Quintanilha recebeu o prêmio máximo do Festival de Angoulême, na França, por Escuta, Formosa Márcia, e em julho, Fido Nesti ganhou o troféu Eisner, nos EUA, por sua versão do clássico romance 1984, de George Orwell.
As obras (*)
- Brega Story
De Gidalti Jr. 320 páginas, R$ 139,90 - Lovistori
De Lobo e Alcimar Frazão. 80 páginas, R$ 79,90 - Barrela
De Plínio Marcos (texto original) e João Pinheiro (adaptação). 128 páginas, R$ 69,90
(*) À venda no site brasaeditora.com.br
- Tarde Demais para Desver
De T0sko. 224 páginas
*Em campanha de financiamento no Catarse: catarse.me/t0sko