Um Lugar do Caralho é uma história em quadrinhos de contrastes surpreendentes.
Se o título sugere personagens que sejam loucos e super chapados, como cantava Júpiter Maçã (1968-2015) na canção homônima citada no título, o roteirista e desenhista gaúcho Thiago Krening nos apresenta tipos fofos à la Turma da Mônica Jovem que no máximo bebem cerveja — barata, fazendo jus à letra — e fumam cigarro enquanto frequentam a Boate do DCE. Não há drogas mais pesadas, nem mesmo cenas de sexo na trama sobre quatro jovens amigos — Daniel, Carlo, Micaela (a Mica) e Lia — que saíam às sextas-feiras para se escabelarem ao som de Raul Seixas e Janis Joplin, Os Replicantes e Ramones, Beatles e Titãs, The Doors e Bidê ou Balde, Pink Floyd e Graforreia Xilarmônica, entre outros tantos nomes clássicos do rock em inglês, em português e em porto-alegrês que embalavam a casa noturna localizada no subsolo da Casa do Estudante da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
O segundo contraste é, de certa forma, antecipado no prefácio assinado por Fabiano Denardin, conhecido no mercado de quadrinhos pela atuação como editor no Brasil das HQs do selo Vertigo da DC — Sandman, Hellblazer, Monstro do Pântano, Escalpo... De 2015 a 2020, foi sócio de Iriz Medeiros na galeria hipotética (assim, em minúsculas mesmo), espaço em Porto Alegre dedicado às artes gráficas. Agora, Denardin e Medeiros dão início à editora hipotética, cujo primeiro lançamento é Um Lugar do Caralho (128 páginas, R$ 59,90, à venda no site loja.hipotetica.com.br).
No texto de apresentação, ele diz: "Sem a obrigação de um espaço físico, a editora hipotética pode se permitir existir no tempo que for necessário, sem a pressão de ter muitos lançamentos, podendo focar em um projeto por vez enquanto encontra o próprio caminho, fugindo do pensamento exclusivamente comercial e indo contra essa velocidade que nos consome enquanto devora tudo ao redor".
Tudo a ver com o trabalho de Thiago Krening. Em contraposição à agitação costumeiramente associada à vida universitária e ao que se poderia esperar de uma narrativa que tem como cenário principal uma boate, o quadrinista não tem pressa para contar sua história. O ritmo compassado possibilita ao leitor prestar atenção à trilha sonora das cenas (versos de canções são tanto adereços visuais quanto comentários sobre o clima emocional) e se sentir tentado nas paradas estratégicas dos personagens para um xis bacon. Por não pisar no acelerador, Krening corre um risco: o de parecer embriagado por uma assumida nostalgia.
"A Boate do DCE foi um lugar muito icônico", escreve na introdução o quadrinista nascido em 1986, em Santa Maria. "Aquele porão com paredes desenhadas era a materialização de uma fase marcante da vida. Começar a vida adulta, estudar em uma universidade, morar em uma nova cidade, fazer amigos, se apaixonar, quebrar a cara e se apaixonar de novo. Fazer parte de um grupo que acredita nas mesmas coisas, ouvir música em volumes prejudiciais à audição, beber quantidades de cerveja prejudiciais ao fígado e inalar uma quantidade de fumaça prejudicial aos pulmões, mesmo não sendo fumante. Hoje eu brinco dizendo que era um lugar insalubre. Mas, naquela época, era uma das melhores diversões que tínhamos nas noites de sexta."
A HQ se passa em quatro noites de sexta-feira, entre 2004 e 2007, com um epílogo em 2019, quando a Boate do DCE, que havia surgido em 1970, sob o nome Clube Universitário (foi rebatizada na década de 1980), e que tinha uma parte no segundo subsolo, a Catacumba, já estava fechada havia mais de seis anos. Por coincidência, foi interditada pela prefeitura de Santa Maria em janeiro de 2013 (por causa de alvará vencido, não atendimento aos padrões de acessibilidade e queixas de perturbação ao sossego), poucos dias antes de o incêndio da boate Kiss devastar a cidade.
Por conta da sua estrutura episódica, Um Lugar do Caralho pode passar a sensação de ser apenas uma colagem saudosista, com referências ao Orkut, ao site Biasoli, a filmes como Procura-se Amy (1997) e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004). Mas daí Krening nos surpreende mais uma vez, primeiro revelando a progressão dramática deste romance universitário, depois cortando o barato. É, literalmente, um momento de ruptura. Só que o autor adota uma linha divergente, evitando motivos trágicos típicos que poderiam provocar a virada de chave na trama. Na verdade, é um motivo típico da juventude, essa fase em que vivemos entre os sonhos e o presente, sem maturidade para as desilusões e sem paciência para a espera.
Eis a receita da HQ: misturar a homenagem a um lugar tri legal, a um lugar do caralho com as reflexões sobre quem já fomos e quem somos hoje. Aí, o sabor das memórias ganha um gostinho amargo, temperado por monólogos como este:
— A gente não sabe quais são os melhores anos da nossas vidas. Tipo, de repente a gente já viveu eles, sabe? A gente tem a expectativa e a esperança de que o futuro vai ser sempre melhor e isso é um motor, né, faz a gente continuar. Mas talvez a melhor época já tenha passado e a gente não se deu conta.
Ou então este:
— Quanta coisa a gente viveu aqui e agora nada disso existe mais.
A melancolia, claro, será contrastada:
— A boate fechou, mas todos aqueles momentos continuam conosco. Se a gente lembra, existe.